domingo, 12 de abril de 2020

O Dr. Ricardo Jorge e o "vírus".

«Tal o organismo que inoculado pelo virus luta contra a infecção, assim o cérebro penetrado da alienação luta no domínio artístico contra a influência da psicopatia; sentem-se na obras as vicissitudes do combate, ora a resistência prodigiosa contra a afecção, ora o seu efeito depressivo e aniquilador.» [página 692]

O médico, deleitante das artes, olhava para a estética grequiana como arte de evolução patológica, a compasso de uma vida possível de misérias, que «se quedaria a vegetar em Toledo, a viver, sabe Deus como, de igrejas de pouca renda e de fidalgos de meia tigela.» [página 669]


Vista de Toledo, c. 1599–1600, AQUI. [Imagem do domínio público, manipulada por mim.]

Aquele que «levava até à megalomania o conceito das suas faculdades artísticas; a sua craveira excedia a dos mais grados, o seu pincel não tinha preço. Um génio deveras complexivo e rico de dotes, afectado de uma hiperestenia de personalidade, levada até ao delírio.» [página 669]

A placagem que se resolve no plano estético em força centrifuga, de espiral crescente de repetições e deformações, até ao fim. Mais tarde, outros o redescobririam , na senda do percursor incompreendido, no limite da consciência da ténue loucura que a todos nos perpassa. Só que na análise do médico Ricardo Jorge, Domênico Theotocópuli, El Greco, estava além desse limite.

«A composição do mestre de Toledo não tem em si que de maior se lhe diga. Sóbrio e concentrado, foge em regra ao efeito fácil do acessório e da decoração; [...]
[...] Moe e remoe os mesmos assuntos sem a minima novidade ou melhoria, [...]
O timbre mais aparente do nosso artista é o colorido; [...] Uma paleta em regra de poucas tintas, num tom dominante de gris argênteo.» [página 678]


IMAGEM: Um El Greco ainda sem fantasmas, mas já com “aquela luz”.

«Amachuca os panejamentos num pregueado de rede; afila e requebra as saliências musculares em ondulações de cobra;» [página 679]


IMAGEM: Batismo de Cristo, c. 1597 - 1600. Corte feito por mim. ©Museo Nacional del Prado

«[...] a Madalena contorce-se como uma histérica.» [página 684]

As mãos de Madalena na cruz... envolvem?


IMAGEM: A Crucificação, c. 1597 - 1600. Corte feito por mim. ©Museo Nacional del Prado


«[...] o homem de pernas para o ar lembra um epiléptico,» [página 684]


IMAGEM: A Ressurreição de Cristo, c. 1597 - 1600. Corte feito por mim. ©Museo Nacional del Prado

«Ora o GRECO vai-se à cabeça humana, e , deformando-a com a violência dum Inca, aperta-a, comprime-a, redu-la a apêndice insignificante do corpanzil, [...]
Este toutiço minúsculo tem de ser pobre em miolo, e é sob o aspecto dum descerebrado que o artista talha a figura dos seres espirituais e divinos. A aparência chega a ser a do imbecil de marca. Que contrasenso êste tão flagrante, que faz mais pensar em alucinação que em reflexão!» [páginas 680 e 681]


IMAGEM: São Sebastião, c. 1610 - 1614. Corte feito por mim. ©Museo Nacional del Prado

«Se depois destas insuspeitas apreciações, a alguêm sobejarem escrúpulos, recomendo que se poste perante a fotografia de dois quadros macabros. Um, aquela peça misteriosa (Zuloaga), que passa hoje pela representação da scena apocalíptica do rompimento do 5.º sêlo (ap. MAYER); atente-se naquelas almas nuas que parecem fogos fátuos, e no anjão, um giganton de festa, espécie de espantalho de corpo em X, metido numa camisa de onze varas.» [páginas 687 e 688]


O Quinto Selo do Apocalipse (Visão de São João), c. 1608 - 1614, AQUI. [Imagem do domínio públicomanipulada por mim.]

«Outro, A ceia em casa de Semeão [...] Um mostruário de horrores e de grotescos; não são almas repassadas da celestial beatitude, são almas penadas, rebutalhos de gente desfeita por todas as misérias físicas e morais, a doença e o vício, a loucura e o crime; há de tudo, caras patibulares, figuras imbecis, acéfalos e hidrocéfalos,» [página 688]


A ceia em casa de Semeão, c. 1608 - 1614, AQUI. [Imagem do domínio públicomanipulada por mim em três cortes, e nas cores.]

«Tenho o GRECO por um paranoico escrito e escarrado. Êste diagnóstico retrospectivo está impresso no seu inventário artístico, e confirma-se pelos indícios colhidos dos testimunhos e documentos que dão o homem como um inadaptado, extravagante, excêntrico, egocêntrico, megalómano e demandista [página 692]

Perante as asserções proferidas, que também não deixam de ter o seu toque moralizante, relembro a observação do Prof. Fernando Rosas sobre as mediadas "profilático moralizantes" recomendadas pelo Dr. Ricardo Jorge aquando da pneumónica [AQUI, episódio 13: A Gripe Pneumónica, a Pandemia de 1918-1919]:

«Acabar com os cumprimentos de uso, apertos de mãos e ósculos de cerimónia, gestos que repugnam à higiene e até à cultura, restos como são de passado selvagem.
As reverências chegam, bem mais inocentes do que os toques suspeitos do próximo, e logo coisas tão polutas como beiços e dedos.» [AQUI, página 13; para os mais curiosos consultar a Biblioteca Digital do Instituto Ricardo Jorge]

Remate final, o antigo logótipo do Ministério da Saúde, com o seu quê de "aparelho circulatório", apresenta figuras, aos meus olhos, de rasgo grequiano [um desculpável castelhanismo].


Termos de uso.

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