domingo, 28 de fevereiro de 2021

Atalaia.

A primeira tentação foi posicionar o cavalete na torre da mesquita, de frente para a onda Atlas, à cálida luz, pela facilidade tonta bebida num título, imaginando bancas de alfarrabistas cá em baixo.

Fotografia completa AQUI.

Mas a Koutoubia não é posto de observação: interdita a quem não professa, nivela-se pela cordilheira, no jogo da perspetiva.

"Here in these spacious palm groves rising from the desert the traveller can be sure of perennial sunshine... and can contemplate with ceaseless satisfaction the stately and snow-clad panorama of the Atlas Mountains", escreveu sete anos antes, e pintou em finais de janeiro de 1943, concluído o acordo em Casablanca. Queria mostrar o que já conhecia, numa outra forma de diplomacia: o soft power.

O jovem Raul Lino não esteve em Marraquexe, andou por Marrocos em 1902 [ler páginas 164 a 168], 41 anos antes, aportando a Tânger, das tangerinas, procurando filamentos da medeia de tempo Ceuta–Alcácer Quibir: o voo de Ícaro da nossa história, o pecado da ambição tentada mas não consumada.

Na dor inconsciente esquecemos Marrocos, aqui tão perto. Grotescamente aproveitado por nós em passeios a Ceuta, para compra de casacos de cabedal, no tempo em que não pertencíamos à Europa Comunitária. E era vê-los no regresso, enchumaçados nos seu couros sobre couros, passando a fronteira, carregando a perspetiva de um lucrozinho fácil. A miséria da falta de ambição continuava. Grotescos éramos. Agora as misérias são outras: os que escapam em desembarques na costa algarvia, para uma vida melhor sonhada na Europa.

Os ciprestes espetados, que Winston pintou, tê-lo-ão impressionado:

Diz o poeta persa do século XII Saidi de Xiraz: «Perguntaram a um sábio: De todas as árvores assinaladas que o Altíssimo Deus criou, grandes e frondosas, a nenhuma chamam azad ou livre senão ao cipreste, que não dá fruto; que mistério haverá nisto? Ele respondeu: Cada árvore tem o seu produto e estação determinada, no decorrer da qual permanece vicejante e florescente, e no tempo que resta fica seca e murchada; a nenhum destes estados o cipreste se assujeita, conservando-se perenemente viçoso; e desta mesma natureza são os azades, ou religiosos independentes. Não ponhas o teu sentido no que é transitório, porque as águas do Djilah ou Tigris hão-de continuar a correr através de Bagodá ainda depois de ser extinta a raça dos califas; se tens na tua mão muito que distribuir, sê generoso como a tamareira; mas se nada tens para dar, então sê um azad, ou homem livre, como o cipreste». [AQUI, páginas 57 e 58]

Na cúpula do minarete da Cutubia [Koutoubia em francês]  viu Reynaldo dos Santos a inspiração para a decoração da nossa Torre de Belém [AQUI, página 130]:

De resto ninguém de boa fé e senso crítico que conheça a Tôrre de Belém e os monumentos marroquinos, pode furtar-se, em face da célebre Coutobia de Marrocos, às afinidades evidentes da sua cúpula aos gomos (do séc. XIII) com as do nosso baluarte.

"The Tower of the Koutoubia Mosque" vai a leilão no próximo dia 1 de março de 2021.

Fotografia AQUI.


Amanhã o nosso Azad faria 83 anos, também no seu tempo comprou um blusão de couro vindo de Ceuta, e admirava o velho Churchill. Amanhã alguém vai mudar da água para o ar, e não é astrologia, é Sebastião da Gama. Para Ti mana :)




P.S. Vemos o que queremos ver, no preconceito e na ignorância, mas há sempre a razão que nos sobressalta: faz sentido? A varanda do Villa Taylor terá sido o pouso do cavalete.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

O prego.

Carne grelhada metida num pão, para comer na mão. Carnes, temperos, gorduras, utensílios e tempo, segredos, há de tudo de norte a sul.

Prego também é apelido de gente, objeto que fixa, peça de carne sem osso, correspondente à parte posterior do peito e que resultou da separação do peito alto. [Prego do Peito, AQUI, página 14].

Permeando os anteriores parágrafos conjeturam-se aceções para o "prego" que comemos:
  1. «Segundo Vitor Sobral, a origem deste prego «remonta ao séc. XIX, na taberna do Sr. Manuel Dias Prego» [Praia das Maçãs], onde era servida esta sandes de carne de vitela em pão de forno.» [AQUI];
  2. «A razão pela qual um bife Prego é chamado Prego, é porque a carne em Portugal éra conhecida por ser "tão dura como pregos". O recurso de usar um amaciante de carne, que é moldado como um martelo para amaciar a carne, também é outra razão para o nome.» [AQUI]; 
  3. O Grande Dicionário de José Pedro Machado inclui no verbete de prego o significado, característico da gíria lisboeta, de «pedaço de carne grelhada ou frita metida num pão». Na mesma entrada, encontra-se também uma acepção que parece próxima e pode lançar alguma luz sobre a génese da expressão: «carne do peito do boi. É curioso ver que a 3.ª edição (de 1923) do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo regista esta última acepção, mas ainda não acolhe prego, «carne no pão», o que pode querer dizer que o significado em análise não estava ainda consagrado no princípio do do século XX.». [AQUI].
Quanto à suposta origem na Praia das Maçãs, remeto para as palavras de José Alfredo da Costa Azevedo [as imagens também são deste livro, e no nome do ficheiro consta a página]:

«Da nota que me foi dada também consta que, nesses tempos longínquos, existiu uma cabana, junto ao areal, a qual pertencia a um pescador chamado Prego, onde este preparava caldeiradas para os visitantes que por ali apareciam, bem como petiscos de mexilhão e percêbes que abundavam nas rochas.

Teria essa cabana (não prédio) sido um primeiro «estabelecimento» do Manuel Dias Prego?

Pela fotografia do Prego vê-se que este, quando construiu o seu prédio, já não era criança [1889]. Enfim! tudo é possível.»


A disponibilidade dos alimentos, a sazonalidade, o aprovisionamento e formas de conservar, condicionam a ementa da futura Casa de Pasto Prego [ver tabuleta]: razoável suposição.




O turismo balnear chegava à Praia das Maçãs, mas não a tempo de ser incluído no Guia do Banhista e do Viajante de Ramalho Ortigão, As Praias de Portugal, de 1876, embora se esforçar-se para ser O ponto mais Occidental da Europa.




O prego mais não é do que uma forma de resolver, rapidamente, um problema: seja a junção de tábuas, ou colmatar uma refeição em falta; é a minha sugestão para o verbete prego.

Pregos há muitos...


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P.S. Descobri o Prego do Martinho em Boticas, ao ver hoje na TVI o programa Mesa Nacional, num total acaso que não é mais do que isso. O mais interessante é a explicação para a utilização da vitela, vejam o vídeo, porque ser Barrosã não tem mistério nenhum, é como a caldeirada, o mexilhão e os percêbes, cozinha-se o que se tem à mão, quando as distâncias são grandes, porque o eram, ou porque os transportes eram lentos, e os frigoríficos não existiam.