domingo, 27 de outubro de 2019

NADA[S]_MEU[S]_0007_PINHA SECA DE CIPRESTE.

Não sei o que faça contigo.

Trouxe-te do Cemitério de Benfica, para ter alguma coisa com que entreter as mãos pelo caminho. Depois, porque tenho o hábito de fotografar de perto, para descobrir o que há, acabei por ver os riscos de corte e desgaste no tampo da velha arca frigorífica que me serve de mesa de trabalho, de sustento... de não ter outra.




Descobri que és mais frágil do que pareces, apesar de dura na tua secura, estás quebrada numa das "asas" [não consegui descobrir o termo]...




És uma pinha seca de cipreste, num mar/mapa de riscos.



Corações ao alto...

Foi o título que desceu em mim, para um conjunto de fotos que já é um hábito [cíclico também], uma quase vestimenta interior, que me leva a prestar atenção ao que piso... e como é bom depois levantar, suavemente, os olhos para o alto, um contentamento que se fixa na retina do cérebro,  e se entende na transcendência de coisa tão insignificante...

Caí, mudei...




A chuva é verniz, espelho e brilho que acrescenta novas subtilezas...




Abre um mar de visões...




Volta a dar alguma plasticidade, à força de arrastar...




Mas um dia seguinte, enxuto, pode trazer alguns prodígios de quase levitação...




Ampliados pelas distensões sofridas: molhar-secar, arrastar...




Pisar... e assim me vou dissolvendo...




Aceitando o risco de não ter escolha...




E a água aqui tão perto.


Poema das folhas secas de plátano

As folhas dos plátanos desprendem-se a lançam-se na aventura do espaço,
e os olhos de uma pobre criatura
comovidos as seguem.
São belas as folhas dos plátanos
quando caem, nas tardes de Novembro,
contra o fundo de um céu desgrenhado e sangrento.
Ondulam como os braços da preguiça
no indolente bocejo.
Sobem e descem, baloiçam-se e repousam,
traçam erres e esses, cicloides e volutas,
no espaço escrevem com o pecíolo breve,
numa caligrafia requintada,
o nome que se pensa,
e seguem e regressam,
dedilhando em compassos sonolentos
a música outonal do entardecer.

São belas as folhas dos plátanos espalhadas no chão.

Eram verdes e lisas no apogeu
da sua juventude em clorofila,
mas agora, no outono, de si mesmas,
o velho citoplasma, queimado e exausto pela luz do Sol,
deixou-se trespassar por afiados ácidos.
A verde clorofila, perdido o seu magnésio,
vestiu-se de burel,
de um tom que não é cor,
nem se sabe dizer que nome tenha,
a não ser o seu próprio,
folha seca de plátano.
A secura do Sol causticou-a de rugas,
um castanho mais denso acentuou-lhe os nervos,
e esta real e pobre criatura
vendo o solo coberto de folhas outonais
medita no malogro das coisas que a rodeiam:
dá-lhes o tom a ausência de magnésio;
os olhos, a beleza.

António Gedeão [AQUI e AQUI]

Tradução por
Translation by

Christopher Damien Auretta and Marya Berry [HERE]

Poem of the platane’s dry leaves

The leaves of the platane tree descend and launch into the adventure of space,
and the eyes of a guileless creature,
moved, follow them.
The leaves of the platane tree are beautiful
when they fall November afternoons,
against the infinity of a dishevelled, bloody sky.
They undulate like the lazy arms
of an indolent yawn.
Rise and fall, wag and repose,
trace i’s and s’s, cycloids and volutes,
write in space with their tiny stems,
in an elegant calligraphy,
any name one fancies,
and they oscillate,
punctuating, in somnolent scores,
a late-afternoon’s autumnal theme.

The leaves of the platane are lovely, scattered on the ground,

green and smooth in the apogee
of their chlorophyll youth.
But now, in their autumn,
their aged cytoplasm, scorched and rent by the sun,
has been eaten away by corrosive acids.
The green chlorophyll, its magnesium lost,
is russet-dressed,
a shade that is colorless,
(which we do not know what to call,
outside its proper name:
dry platane leaf).
The sun’s furnace has cracked the leaf,
a dense darkening accentuates its veins,
and this real and guileless creature,
seeing the ground covered with autumn leaves,
ponders the ruin of things about it.
They owe their hue to magnesium’s absence,
to those eyes, their beauty.



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Post scriptum

«Aspirai às coisas do alto e não às coisas da terra»

O que encontrei quando procurei pelos "Corações ao alto", AQUI, na página 79. Andava intrigado e pelo menos descobri de onde ouvi. Ontem, no funeral do Dr. Luís Coelho, também descobri que "a Fé ilumina, não tira a dor" [palavras do Padre]. Continuo com o problema de base [a falta de Fé], mas pelo menos vou-lhe tateando os contornos, é que para mim a Fé era [também] um analgésico. Pelos vistos há mais além, e eu continuo tão pagão, como as minhas folhas, e carrego inquietação.

domingo, 6 de outubro de 2019

Marcas de areia.

«Por outro lado, o soneto que começa com "Quando voltei" reporta-se a um regresso à praia onde o poeta reencontrou os passos que lá tinha feito.»

Estas palavras, que encontrei na tese de mestrado do Tiago Clariano, acionaram o meu suspension of desbelief, o mesmo que me fazia desconfiar da literalidade dos dois primeiros versos:


Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a húmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
— Tão rediviva!, nos meus olhos baços...

Olhos turvos de lágrimas contidas.
— Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda essa extensa pista — para quê?
Se há de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa...


No meu parco, apressado, e recente entusiasmo pela obra, fiquei na dúvida se não seria o soneto "Regresso ao lar", a que se refere Fernando Pessoa em carta ao autor:

«Ao soneto que considero o maior de todos os seus, e é sem dúvida um dos maiores que tenho lido — “Regresso ao Lar” — , não me refiro, visto que o seu assunto, infelizmente, inibe (e creio ser essa a vontade de V. Exa.) que ele se publique.» AQUI

Enquanto este ["Quando voltei"] foi publicado em 1916, na revista Centauro, juntamente com outros 14, que foram o embrião da Clepsydra, o outro ["Regresso ao lar"] consta dos perdidos.

Bem mais tarde, em 1935, Álvaro de Campos também "Regresso[u] ao lar" assim [AQUI]:

Há quanto tempo não escrevo um soneto
Mas não importa: escrevo este agora.
Sonetos são infância e, nesta hora.
A minha infância é só um ponto preto

Que num imóbiI e fútil trajecto
Do comboio que sou me deita fora
E o soneto é como alguém que mora
Há dois dias em tudo que projecto.

Graças a Deus, ainda sei que há
Quatorze linhas a cumprir iguais
Para a gente saber onde é que está...

Mas onde a gente está, ou eu, não sei...
Não quero saber mais de nada mais
E berdamerda para o que saberei.



Mas o que verdadeiramente me fez ligar tudo foram as palavras do poeta Sebastião da Gama, reveladas por Maria de Lourdes Belchior no prefácio que fez para o livro "Campo Aberto":

«Tenho notado em mim esta outra coisa: que às vezes um pormenor físico exterior é como que o despertador de coisas que viviam em mim mas que eu não exprimia; e que esse mesmo pormenor vai aparecendo no poema de tal modo que, aos olhos de quem me lê, ele não é mais do que um símbolo inventado, quando ele é, de facto, um símbolo visto»,

e como remate, de contradição [minha], o seu poema "Condição", de 1950:

Constrói ao menos
qualquer coisa efémera.
Pois mais não podes ser,
sê ao menos efémero.

Grava os passos na areia,
desenha sobre a estrada
teu vulto.
É melhor do que nada.

A desfazer-te o rastro
virá o Mar, é certo.
Virá, é certo, a Noite
beber a tua sombra.

Efémero? Serás...
Mas presente
no Mar, eternamente;
na Noite, para sempre.


SEBASTIÃO DA GAMA
in "Campo Aberto", 5.ª edição de janeiro de 1999, Ática, páginas 121 e 122.



É meu o poema "Quando voltei".
Inteiro sou ASSIM, como me desenhou Leal da Câmara.




Marcas de areia... sim, pedregoso fluir de ampulheta...
Marcas na areia... ao tempo...


Fui ASSIM, quando fui colocada na página 95, a marcar o soneto Caminho.

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Post scriptum


Aprende a renunciar
a tudo
até mesmo ao silêncio

in "A Papoila e o Monge", 1.ª edição de novembro de 2013, Assírio & Alvim, página 36.

Para que aqui fique assinalada a investidura de D. José Tolentino Mendonça [5 de outubro de 2019].

O que querem dizer estas três linhas?