quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Barcos de Flores.

Cantão, Hotel [Victoria] em Ilha-Min [Chamine], 1899, observando «Ao Longe os Barcos de Flores», Camilo Pessanha escreveu:


Postal disponível AQUI.

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

[in Clepsidra, edição crítica de Barbara Spaggiari, INCM, julho de 2014, AQUI; mas outras há]


Fotografia disponível AQUI.



Wenceslau de Moraes, hospedado no Canton Hotel em novembro de 1889, escreveu:

«[...] defrontando com o hotel, surgiam iluminações festivas, eram os tankás-flores, donde irrompiam os primeiros acordes de uma música estranha. Aluguei então uma sampan, e mandei remar para os tankás-flores.
Os barcos especiais que têm para nós esta denominação semi-portuguesa, e que em linguagem indígena se chamam chí-tun-ten, agrupados aos vinte e aos trinta, formam um bairro à parte, de prazer e de luxo, [...] Umas cantam; outras dedilham em desconhecidos instrumentos; outras segredam confidências polvilhadas de malícia, enquanto vão preparando o ópio, que os seus adoradores, deitados sobre estofos, aspiram com delícia.
 [...]»
in Traços do Extremo Oriente, Parceria A. M. Pereira, 2.ª edição de 1971, páginas 60 a 62.

Camilo Pessanha esteve em 1899 no mesmo hotel [10 anos depois de Wenceslau], onde coletou e arquitetou o poema, que viria a ser publicado no ano seguinte no jornal Novidades, n.º 4931, de 28 de abril. Entretanto o hotel tinha mudado o nome para Victoria Hotel, em 1895. Mais pormenores AQUI. A 26 de agosto de 1899 já se encontrava em Hong Kong, onde embarca para Portugal num navio da companhia «Messageries Maritimes», via França AQUI.


Mapa da Ilha-Min em 1920, onde podemos localizar a negro [alteração feita por mim] o Victoria Hotel. Não sei porque razão Camilo Pessanha grafou no poema o local como Ilha-Min. Chamine é como a designa em português Jaime do Isno em 1933, a ilha Shamian de Guangzhou [nome atual de Cantão]. Também designada no passado por Shameen ou Shámin [ver mapa seguinte].


Pormenor de Cantão em 1860. Mapa completo AQUI.

A apenas oito horas de viagem de Macau, "pelo rio de Cantão acima, nos vapores que diáriamente fazem as carreiras, num e noutro sentido. [...] Cantão estende-se, a perder de vista, numa planície banhada por um braço do vasto rio onde vive o mais extraordinário formigueiro humano em milhares de barcos de todos os tamanhos, desde o Flower Boat, de decorações vistosas e sensual, aos barcos de carga e ás sampanas de «tankareiras» a sorrir, até ao mais humilde «tankar» onde os vendilhões andam apregoando por entre os barcos alinhados, como se fossem percorrendo verdadeiras ruas aquáticas. [...]
Fomos passear por Chamine, cuja volta se faz em meia hora.
Chega-se a ter a impressão de que estamos dentro de um grande transatlântico que tivesse encalhado, apenas desfeita pelos pesados Buildings cercados de relva.
O terreno está todo aproveitado, cuidadosamente limpo, como um parque, onde não faltam as «armas» de várias nacionalidades, mas, ao passarmos por certo sítio da Concessão Francêsa, surpreende-me um talhão bravio onde a erva cresce por entre alicerces mal saídos do terreno.
Aquele bocado é português, era ali que devia edificar-se o nosso consulado — sempre o mesmo abandono das coisas do Oriente !
[...]
Passámos depois ao outro lado do rio, à ilha de Honan, e desembarcámos num Flower Boat.
Flower Boat — barco de flôres — era um dos muitos barcos de prazêr que há poucos anos povoavam as margens de Cantão, mas que os novos govêrnos baniram como pretensa medida de moralidade.
Os Flower Boat eram, afinal, uns verdadeiros «Cou-Lau» aquáticos onde se serviam ceias com música e «Pi-Pa-T'chai»."

In «Visões da China» de 1933 [tenho a primeira edição], de Jaime do Inso, páginas 138, 143, 144, 153 e 154.

Num interessante artigo intitulado Macau, cidade da utopia? [Revista História, Ano XI, N.º 119, Agosto de 1989, páginas 10 e 11], do ilustre [que não célebre] eborense Joaquim Palminha da Silva, descubro a seguinte passagem:

«Mas que dignidade a mulher oriental irradiava no seu magnetismo sexual! A mais ínfima delas, a condutora do tancar — pequeno bote e habitação de família —, a tancareira do porto da cidade, de origem chinesa, com as suas calças largas de ganga azul, deixando ver as pernas nuas, a roupa ligeira deixando perceber as formas desta remadora desenvolta, tinha um código de honra que era apreciado porque garantido pela profissão. Era frequente os capitães dos navios alugarem um tancar ao mês, incluindo a mulher que lhes servia ao mesmo tempo de costureira. No geral prostituta — profissão regulada pelas deusas —, o tancar de cada uma era mantido no mais irrepreensível asseio, garantindo a mais completa fidelidade ao alugador, durante todo o período do aluguer.»

Ao longe os Barcos de Flores...

Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

Ao longe, mas quão longe?... no canal ou em Honan... talvez em Portugal, é que estão próximas as datas de 1898 e 1899 [Ana de Castro Osório].

Afinal a Flor...