quinta-feira, 21 de abril de 2016

Maria Pimentel Montenegro.

Uma placa toponímica com nome feminino, poetisa num intervalo de tempo de quarenta e cinco anos. Quem seria?... como poetizaria?... qual o seu semblante? No Google não encontrei um poema, dados biográficos, uma foto, nada, apenas a referência ao nome da rua. Procurei  pelos seus livros, não foi fácil, mas encontrei. Avancei para a sua compra, impaciente... como seriam os seus poemas?


Fica AQUI.

Consegui quatro livros, num investimento total de 40,20€. No entanto o último que comprei, e que representou 59% do valor total, não acrescentou grande coisa ao que já tinha sobre a poetisa, exceto concisão em demasia (falta exatidão no dia e local de nascimento). Trata-se do «Dicionário Mundial de Mulheres Notáveis», uma relação custo-benefício desfavorável. Por vezes é necessário refrear os implusos, concentrar no essêncial. A impaciência paga-se cara, literalmente. Pode ser que venha a ter algum préstimo futuro. O tipo de letra do título da capa do livro, Egyptienne penso eu, deu-me uma ideia, fica para depois.





Passo a transcrever os dados biográficos e alguns dos seus poemas. Fica o registo para que no Google se encontre algo mais do que apenas um nome de rua. Para que se possa ler e ver a Maria, para que se saiba o que fez na sua janela de tempo. A escolha é minha, subjetiva e apressada o quanto baste, limitada porque sou limitado, com uma certa aversão ao lirismo mais exuberante.  A transcendência de quem se dá e não quer nada em troca, o olhar embevecido pela natureza ao redor, a simplicidade na apreciação, o despojamento em relação ao supérfluo, a fragilidade corporal (a sua doença) e temporal (não somos nada). Foi assim que me aproximei da Maria, mas certamente a Maria é muito mais do que isso.

Levei o que tenho da Maria, os livros, ao Miradouro da Vigia, aliás Miradouro da Condessa de Seisalfigura esquecida, também marcada por uma tragédia. Foi lá que tirei as fotografias, estive sentado, não debaixo da tília desfolhada porque o chão estava inundado, mas no banco ao lado, por debaixo do plátano, já com as primeiras folhas. Arejei as páginas dos livros, imaginei-a sentada, senti a luz na pele e nos olhos. O céu cinzento passou a azul, cavalgado de nuvens de algodão... parecia, e foi o que vi.






No «Dicionário Mundial de Mulheres Notáveis» consta o seguinte sobre a Maria:


MONTENEGRO, Maria Pimentel (1925 —). Poetisa portuguesa; natural do distrito de Coimbra; irmã da escritora Manuela Montenegro (v.). Quando estava no 2.º ano do liceu fez os primeiros versos. Depois, dedicou-se à literatura, colaborando em diversos jornais e revistas. Durante alguns anos, afastou-se da literatura, por motivos particulares, voltando a aparecer com mais intensidade a partir de 1958. Publicou: Asa Ferida (1960), galardoado com o «Prémio Leitor» instituído num concurso do Diário de Lisboa (1961), 2.ª ed., 1963; Pássaro de Fogo (1962). Tem colaboração disseminada por vários jornais e revistas: Diário de Lisboa, Diário Popular, República, Letras e Artes, Viagem, Diário dos Açores, Oliva, Jornal de Sintra, Correio Beirão, Notícias de Penacova, O Despertar, O Século Ilustrado, etc. Também tem escrito contos.
O dicionário data de 1967, a Maria tinha publicado até então dois livros. Publicaria mais um livro em vida , «Carta de Prego». Carta fechada que só se abriria em determinadas circunstâncias, contendo instruções para situações de exceção. Terá sido prática corrente na marinha, e é possivel que ficasse presa num prego até ao momento de ser lida pelo comandante do navio, já em alto mar. Não tenho esse livro. É a carta de prego que a Maria nos deixou. Uma despedida?

O primeiro poema que li da Maria foi DÁDIVA, uma bela escolha aleatória, do primeiro livro que chegou às minhas mãos, «Poesias Escolhidas» (1973). Foi o primeiro...

Escolhi sete poemas. Os seis primeiros seguem a ordem cronológica de publicação, o último é inédito. Entre parênteses, a seguir ao título do poema, deixo o motivo da minha escolha / leitura. Digitei os poemas tal como estão nos livros. O espaço entre o final da palavra e o ponto de interrogação, ou ponto e virgula, está impresso assim, e assim ficou.


LAMENTO (é o seu retrato físico)

Senhor, porque me deste
este corpo de garça ondulante,
estas mãos esguias de veias azuladas,
e no meu olhar puseste
o anil das madrugadas ?

Senhor, porque me deste
um coração todo ternura
e à íris dos meus olhos
a sombra da noite escura ?

Senhor porque destino
foi que me deste
esta alma amorosa
e no meio seio pequenino
me puseste
dois botões de rosa ?

Senhor, porque me deste
aos cabelos, do sol e do oiro
a fulva tonalidade
e ao meu olhar
esta expressão de saudade ?

Senhor, porque puseste
no meu corpo efémero
leveza e graça,
e lhe tiraste
a maior virtude ?
Senhor, porque me deste
esta desgraça
de não ter saúde ?






ATÉ SEMPRE (é o seu testamento poético)

Quando se quebrarem as amarras
e a minha Nau for à deriva
por ignoto mar, definitivamente,
não me digam adeus.
Não vertam lágrimas
em vasos de cristal ;
não me pranteiem tristemente.
Quando a minha «barca» me levar
não me acenem com lenços brancos
na partida.
Procurem antes ver-me
(porque eu estarei aí) no rubro gritante
das papoilas que alegram as searas ;
no frescor do orvalho matutino,
na estrela da manhã,
no oiro do Sol poente.
Buscai-me na fragilidade
da flor que desponta e se desfolha ;
nos risos de criança ;
no canto da cotovia,
no perfume da urze,
nas folhas outonais
que o vento arrasta em loucos bailados.
Buscai-me de novo
na espuma de cada onda
que vem de longe
se desfaz e renova.
No murmúrio do regato que canta,
no gemido dos búzios,
em cada astro que brilha,
em cada planeta que surge.
Procurai-me, que eu estarei
sempre convosco
— Poetas, meus irmãos !


DÁDIVA (é o meu primeiro... )

Na alegria de me dar
minhas mãos abri em luz
e atirei-te a uma porção
de claridades e estrelas.
Que me importa, se entre nuvens,
és incapaz de colhê-las ?
(Não há contento maior
que este dar sem receber !)
Teço grinaldas de rosas,
de alegrias e tristeza
e nem sei se me queres bem ...
Ponho o Sol à tua mesa
e um tapete de luar
no teu quarto de dormir.
Em cada areia da praia
Deponho um cravo vermelho
e desfolho malmequeres
e atiro com girassóis
por sobre as águas do mar.
Na crista de cada onda
teço rendas de noivado
para acarinhar teu corpo
quando te fores banhar.
Não há alegria melhor
que é o dar sem possuir.
(E a loucura de me ser
realizando-me em ti
que em meus sonhos adivinho,
e nem sei se tu me queres...)

Na alegria de me dar
sem perguntas ou querelas
semeio no teu caminho
duas mãos cheias de estrelas.


REMORSO DA PALAVRA ESQUECIDA (vezes demais deixamos coisas por dizer)

Sentou-se o mendigo
à minha porta.
Pediu esmola ;
«pela sua saúdita», disse.
Dei-lhe pão e uvas.
Olhou-me, fundo, nos olhos.
Vi a sua solidão
e deixei-o partir
sem a palavra amiga.


TRÂNSITO (desarmante a forma como termina)

Não é este meu grito
o que fica.
Nem o som da trombeta ;
o troar do canhão ou o estertor da cidade.
Ficarão os poemas ...
Nem os poemas talvez.
Apenas o eco de uma voz,
um poente de saudade,
um canto de amor além fronteiras.
Não é este meu clamor, o que fica.
Mas o anseio de fraternidade,
uma música, um poema,
um elo, um símbolo — Continuidade !


SEM JUSTIFICAÇÃO (nonsense)

Sapatos cambaios,
fato a bambolear, coçado.
«... se ao menos chovesse !»
Chuva justificação
Não há dor que a afronte.
Já sofreu demais.
Não é nova nem velha,
Já não tem idade.
Não tem idade para coisa nenhuma.
Passos ... passos ... passos.
Nem frio, nem chuva, nem vento.
Apenas o trilhar incerto
no cerco circundante
de certa mortificação.
Ninguém dirá : — uma pobre mulher.
Só o cansaço nos ombros
e os passos, passos sem rumo
no negro asfalto,
no dia cinzento.
«Se ao menos chovesse ...»

Chuva, justificação.


GESTO AUSENTE (o que me acontece)

No teu jeito de estar ausente
em mim te procuras
e não te encontras.

Caminhamos na latitude zero.
Ecos perdidos
de imutável desencontro.

No costume de ser distante
não sou de ninguém
nem me pertences.

Em ti me procuro
e não te encontro.
Gestos e jeito de ser ausente.


Em memória de Maria, digitalizei e converti para PDF, AQUI.




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P.S. Este blogue completa hoje (21 de abril) dois anos, a Rainha Isabel II do Reino Unido 90, eu chego ao Índio. Estreia hoje «Balada de um Batráquio» no IndieLisboa (11 minutos que iluminam o preconceito e a crendice, é o meu pré-conceito :)).

Prémio Unicórnio Voador 2015, os vencedores em cada uma das três categorias foram revelados no início do corrente mês (não foi mentira :)).

O blogue é naturalmente pessoal, quer isto dizer que, entre outras coisas, os materiais (texto e imagens) são todos desenvolvidos por mim (exceções são devidamente assinaladas), e têm um sentido, por vezes não direto. Por exemplo, hoje precisei da imagem de um prego, poderia simplesmente ir buscar na internet, é fácil, mas não é o meu jeito, tenho para comigo uma exigência de autenticidade. O meu prego, talvez não fosse o que imaginei, mas encontrei este, que até tem ferrugem, perfeito. Depois é o prego do titulo de um dos livros da Maria Pimentel Montenegro, mas também é o prego que marca a passagem de mais um ano. Paulo, tu sabes a que prego me refiro :)

As palavras a azul, ligações que levam a outras páginas, a outras leituras, a outras descobertas, ou que também podem ser a fonte do que verti na minha mensagem, são muito importantes, mesmo aquelas ligações que remetem para o dicionário... as palavras são mágicas, fascinantes, deslumbrantes. Hoje dou muita importância a elas, é como construir um muro de pedras, e as pedras não são tijolos, não são iguais. A parede de pedras vai-se construindo de improviso, é preciso escolher, desbastar um pouco, ajustar... tenho a ideia do muro que quero construir, mas vão acontecendo desvios :)  Os assuntos vão acontecendo ao sabor do tempo :)

Algo a aprender... A.09 Oficina de Experiência Estética e Poesia Contemporânea, 13 Semanas

Algo a ouvir... ENSEMBLE É O NOME DO NOVO ÁLBUM E ESPECTÁCULO

Algo a ler... Segredos Para Envelhecer Com Saúde

Algo a ver... Um autor que muito prezo desde o momento em que li o seu livro Previsivelmente Irracional. Dan Ariely - The Honest Truth About Dishonesty - TAM 2013



«É verdade que o processo de envelhecimento envolve sempre um acentuar do pensamento rígido, das opiniões firmemente mantidas e das atitudes endurecidas. Mas, embora não consigamos derrotar o envelhecimento físico de modo a permanecermos jovens de corpo, não necessitamos de grandes esforço para nos mantermos jovens de espírito. O truque é nunca deixarmos de fazer perguntas e nunca deixar de explorar, sejam novos lugares, seja novas ideias.»

in «A Olho Nu» de Desmond Morris

«Os anos aproximam-se silenciosamente.»
Ovídio

domingo, 10 de abril de 2016

Quem precisa do «raio verde»?

À procura do «raio verde» é o desafio, o pretexto, para os próximos tempos. Fenómeno físico que se pode observar ao nascer ou pôr do sol, resulta da refração da luz, a que se junta a ilusão ótica por via da persistência retiniana.

O Júlio Verne fez dele um romance, o Éric Rohmer um filme, a Maria Pimentel Montenegro um poema, o Marçal Grilo continuava à procura dele na Praia Grande, não sei se entretanto já o viu, e eu venho juntar-me agora aqueles que o procuram, e convidar-vos também.

No filme a explicação encontra-se AQUI e a confirmação AO LADO :). As respetivas legendas AQUI e AQUI... quase chegamos a Waikiki :) gravem os quatro ficheiros para o vosso computador, depois é só visualizar os filmes. Da junção dos dois dá para pressentir o filme, mas o melhor mesmo é ver. A Delphine é...

O poema vem no livro Raio Verde, é a sua abertura, num livro póstumo...


O Sol na sua agonia
ao morrer ainda lança
raio verde, cor de esp'rança
promessa dum novo dia.
E assim da Eternidade —
onde estarei brevemente —
pudesse eu a toda a gente,
desta luz que me alumia,
lançar do azul silente
um raio de claridade.


Entretanto à minha volta, ao nosso redor, não se olha o horizonte, não se sente a brisa no rosto, não se cansa o corpo, não se fala, não se agrega... reduz-se, separa-se, isola-se, uma matriosca que se fecha. Quero (eu não quero) ir-estar na gaiola do consumo, a olhar para um pequeno ecrã táctil, murmurando se me falam, e continuando a dedilhar-olhar as mesmas coisas viciosas... antes fossem viçosas, não grassava a obesidade e a miopia.

«Culture may even be described as that which makes life worth living.»
«Cultura pode até ser descrita como o que torna a vida digna de ser vivida.»

A citação é do Eliot (T. S.) e aparece no prefácio do recente livro «A cultura na vida de todos os dias» do Jorge Barreto Xavier.

Foi este estado de coisas que me levou ontem a pensar: quem precisa do «raio verde»?

Esparso?... volto mais logo...

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P.S.

domingo, 3 de abril de 2016

Veste-me de poesia...

É assim que vejo o POESIA-ME, escarrapachado e garatujado na base de uma coluna que suporta o Aqueduto da Gargantada, em Queluz.


AQUI, no Google Maps.

Mas também podia ser o despir-me para a poesia, como se fosse banhar-me nela, fundir-me, pele, carne e osso em poesia, ou fazer um poema apartir de, ou para: inspiração que desperta na emoção e no sentimento, vida e morte, belo e feio, prazer e dor, e tanto pode ser pessoa ou natureza. Ando às voltas e sinto (é como um vibrar).

Tinha intenção de escrever esta mensagem antes do fim de março (a 21 foi celebrado o Dia Mundial da Poesia), não começaria assim, e teria um seguimento. Das casas de Ruy Belo passaria para as janelas de António Gedeão. Mas assim não aconteceu, tive de pular uma semana, e entretanto apareceu-me o POESIA-ME e uma dor nas costas.

Resolvidas (quase) as dores, vou digitar para vós, e para mim, o poema Aurora boreal do António, apartir do («meu») livro Teatro do Mundo. Este livro é muito meu, está nele Calçada de Carriche, a minha vida parece que anda ao ritmo deste poema, e o livro em si tem uma estória que talvez um dia vos conte.

Encontrei esta semana a «Feira do Mundo», a minha é de papel, de 1967, esta digital, espreitem as páginas 38 a 48. As semanas passam e vão acrescentando, quase perco o fio à meada, mas por vezes algo se encaixa, é o caso: Teatro do Mundo e Feira do Mundo. Coincidências. O mundo é um teatro e uma feira. Representar, comprar e vender. É o que acrescento de uma semana para a outra, e que abre mais um ramo. Divergir. Retomando o leito maior, o que se segue não é «copy e paste».

Aurora boreal

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham oblìquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Ó janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

No poema abrem-se 13 janelas, mas começa por referir que são 40. E as outras?... Serão anos ou um ciclo que começa/termina? E o título Aurora boreal...


Imagem retirada do artigo da Wikipédia sobre Aurora, AQUI.
Imagem retirada do artigo da Wikipédia sobre Aurora Borealis (painting)AQUI.

Onde estão as janelas?... mais parecem cortinas de janelas, ou véus rodopiantes em corpos que não estão lá, e que se imaginam desnudos... o apelo e a sedução do mistério que se assume inexplicável. Fico desconexo. O corpo do poema é palpável, o final inexplicável.

Deixo-vos assim...




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P.S. O que está para vir...