domingo, 23 de outubro de 2016

Botas de Deserto.

Conhecia vagamente a designação, apareceram em 1949 e são um ícone, mas não dei por isso.

O olhar, ligeiramente abaixo da minha linha do horizonte, tocou na sua simplicidade: a forma feita de cores e materiais sóbrios... estava na loja Clarks C.C.Colombo. Experimentei por curiosidade, o calçado é prioridade na minha parca indumentária, e estranhei, desgostei o pisar, adorei o arejamento nada claustrofóbico destas botas. Disse que não (nunca) as compraria, a Roberta detestou-as, mas fique a pensar nelas durante a semana.

O calçado é como a nossa voz, nunca sabemos como ela soa nos ouvidos das outras pessoas, o que ouvimos de nós é diferente do que os outros ouvem de nós, explicando, a nossa perspetiva do que calçamos é do alto da nossa verticalidade, essencialmente o peito do pé, e depois o rodar ligeiramente para lhe apreciar o flanco, e o grand finale, o espelho, o que mais se aproxima de como os outros nos veem (quando quero tirar uma dúvida sobre uma pessoa olho para os sapatos), mas primeiro tenho que sentir conforto no pisar, leveza e arejamento, e finalmente gostar do que vejo na vertical, os atacadores que ajustam o sapato ao peito do pé, gáspeas de pele castanha e solas sintéticas (tive uns sapatos de pele de cabra que adorei, o pigmento castanho era de origem natural, extraído do milho, comprei-os em Campina Grande); não gosto de biqueiras afiadas ou quadradas. Se tudo se ajustar perfeito e belo tenho a minha escolha.

Foto do livro "O Gentleman - Livro da Moda Clássica Masculina" de Bernhard Roetzel

Não estou na foto, mas serve para elucidar um pormenor extremamente importante, a patine que o uso acrescenta ao sapato, uma extensão da personalidade de quem o usa. O sapato é uma segunda pele, está lá tudo, as rugas e as cicatrizes da vida, o aprumo ou o desleixo, os estados de alma de quem os usa.

Voltando ao início, só recordo o pisar das Desert Boot, mas não as apreciei na vertical, nem sequer ao espelho, talvez seja um pretexto, porque tenho pensado nelas, porque tenho de as experimentar de novo. Continuam assim, desengonçadas, como nestes anúncios de outrora (há mais AQUI e AQUI)... lindas?

https://theidleman.com/manual/advice/how-wear-desert-boots/

Do que li da sua história ficou-me esta imagem: 'officers swanning around with suede boots and swagger sticksAQUI.

Botas de Deserto (Desert Boot) é a marca comercial da Clarks, uma variante das botas Chukka.


Foto do livro "O Gentleman - Livro da Moda Clássica Masculina" de Bernhard Roetzel

Atualmente os meus sapatos de trabalho são ESTES.

domingo, 9 de outubro de 2016

Ganhar o dia.

Aquilo por que podem pagar-lhe na zona de sobreposição naquilo em que é bom, e que dá a profissão, forma e tempo de ganhar o dia. Mas também se ganha o dia na descoberta e contemplação do belo imaterial, que nos desperta, que nos dá uma outra existência.

O ponto de partida será sempre o material, afinal tenho um corpo, que não me pesa e liberta (exceto na doença e quando é castigado pelo trabalho), que me dá o movimento, que me permite trespassar o ar, a visão panorâmica com todas as cores e pormenores, os arrepios de sensações na pele, as vibrações musicais, o paladar que se antecipa no cheiro... viver é alimentar os sentidos... sentidos sentidos e os vários sentidos.

Não estava a prestar atenção, mas derrepente, assim com erro e tudo, de enxurrada, capto no ar: tem mais presença em mim o que me falta... Manoel de Barros... sabia apenas que existia, apartir do dia em que morreu... AQUI, vou atrás e encontro:

O livro sobre nada (AQUI)

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.

Assim é que se ganha o dia. E no seu final, estendido e repousado, começo a ler em voz que se ouve para mim e perto de mim, o frémito desta orquestra em movimento: eu, o verso e alegria de assim ganhar o dia. Cumpre-se o homem imprudentemente poético que existe em mim... palavras plagiadas do título do livro "Homens imprudentemente poéticos" de Valter Hugo Mãe. Descobrias no passado feriado, e ganhei o dia. Com um título assim dá logo vontade de ler... e fiquei a pensar: o que é ser homem imprudentemente poético?... é expor o flanco, dar a sensibilidade, desprezar a força e encontrar a força na diferença, ou tudo isto não passa de um grande disparate em construção.

Posso agora ler a entrevista do autor ao JL, e avançar para o livro, literatura meus caros, da qual andei muito tempo arredado. Ao mesmo tempo recupero "Liberdade para Escolher", com prefácio de João César das Neves, e "Eu, o Lápis" de Leonard Read. Ganhar o dia em todas as frentes.

Hoje é dia de lembrar que há dias em que se ganha o dia, e o dia de hoje ainda está mais novo do que velho, mas já tem uma perda, é o dia de despedida do Gustavo dos Escuteiros.


Hoje de nós no Museu do Azulejo, 9 de outubro de 2016.