domingo, 27 de maio de 2018

Oficina de tipografia.

Uma prensa, como as utilizadas no fabrico do vinho e do azeite [alimento e luz], mas em que a "placa compressora" não gira [invenção sua], uma liga de chumbo e antimónio que permitiu o fabrico de tipos móveis duradouros [afinal vinha de uma família de ourives], papel em abundância, e um alfabeto com pouco mais de duas dezenas de letras [23 no nosso caso], tudo conjugado por Gutenberg [há surpresa], e que leva ao aparecimento do livro impresso.

Em 1455 já procurava clientes, acrescento eu, a partir do que li na folha de sala da exposição "Letra perfeita e clara que se pode ler sem óculos", que podem visitar na Biblioteca Nacional até 2 de junho de 2018 [entrada livre].



Introdução concisa e breve dada pelo formador João Sebastian, que podem conhecer melhor nesta entrevista, AQUI [página 139], da Associação Oficina do Cego, e rapidamente começámos a "sujar" as mãos. Vocabulário técnico na medida da necessidade, ou curiosidade, e mãos na "rama", termo técnico que tem origem na palavra alemã rahmen, que significa quadro ou caixilho [encontrei].


O fascinante componedor, quase uma extensão do membro de quem o usa, cioso da sua utilização e propriedade, e que permite rapidamente compor na largura desejada [a busca incessante da eficiência: mais com menos tempo].


Um método de tentativa e erro, que se vai aperfeiçoando na experiência de cada um: a composição manual, o espalhar da tinta com o rolo, a colocação precisa do papel, não esquecendo o feltro de aconchego entre este e o ferro da prensa, a força a aplicar, o cuidado ao retirar antes de ver a surpresa. Texturas que se podem aplicar, e até falhas que se podem aproveitar. Por exemplo, nas palavras do Marco Sousa Santos, embora noutro contexto:

«Eu não tenho um método nem uma visão científica para o design. O que torna a disciplina do design excitante é a tensão entre razão e emoção, a indisciplina como processo criativo, a reinvenção da metodologia no decorrer do projeto, a coragem de converter o erro em novidade.» AQUI]


Afinal a entrelinha é uma lâmina de metal, que os olhos medem, e a ponta dos dedos afere, no espaço que se pretende. Dá uso à interação que nos fez: mão e cérebro, cérebro e mão. O desmaterializado conceito que aparece na combo box do software, afinal, exige um pouco mais do que um clique.


P.S. Oficina de Tipografia realizada a 26 de maio de 2018, na Casa Roque Gameiro, no âmbito da exposição "Gente da Amadora, História e Memória Ilustradas".

Folhado.

Não o levava comigo consciente, nem tampouco tinha planos, bastava o que via. Talvez o Caeiro pastasse aqui o seu rebanho.



Completamente em desordem, e em desnorte, não fosse a companhia, e a curiosidade no olhar, atento porque me chamam as cores, afinadas pela lenta Evolução, procurando saber o que é, que nome lhe deram... prosaico de preferência.



Microcosmos de tudo, que nos engloba. Mas há também os cheiros, que se apuram nos dedos, o silêncio que permite educar o ouvido, no canto das aves e no tempo do vento. 



E quando parece que chegamos, da falésia não podemos saltar, o folhado que apenas conhecia de evocação poética, vivida por outrem, renova-me o caminho: não lhe conheço as flores, nem as variações diárias no perfume.



Obrigado José Carlos.


Um certo tempo no fazer das coisas ajuda a infiltrar, por isso digitei, não copiei-colei, o poema que dá o nome ao primeiro livro publicado pelo Sebastião da Gama.

SERRA-MÃE

O agoiro do bufo, nos penhascos,
foi o sinal da Paz.
O Silêncio baixou do Céu,
mesclou as cores todas o negrume,
o folhado calou o seu perfume,
e a Serra adormeceu.

Depois, apenas uma linha escura
e a nódoa branca de uma fonte amiga;
a fazer-me sedento, de a ouvir,
a água, num murmúrio de cantiga,
ajuda a Serra a dormir.

O murmúrio é a alma de um Poeta que se finou
e anda agora à procura, pela Serra,
da verdade dos sonhos que na Terra
nunca alcançou.

E outros murmúrios de água escuto, mais além:
os Poetas embalam sua Mãe,
que um dia os embalou.

Na noite calma,
a poesia da Serra adormecida
vem recolher-se em mim.
E o combate magnífico da Cor,
que eu vi de dia;
e o casamento do cheiro a maresia
com o perfume agreste do alecrim;
e os gritos mudos das rochas sequiosas que o Sol castiga
– passam a dar-se em mim.

E todo eu me alevanto e todo eu ardo.
Chego a julgar a Arrábida por Mãe,
quando não serei mais que seu bastardo.

A minha alma sente-se beijada
pela poalha da hora do Sol-pôr;
sente-se a vida das seivas e a alegria
que faz cantar as aves na quebrada;
e a solidão augusta que me fala
pela mata cerrada,
aonde o ar no peito se me cala,
desceu da Serra e concentrou-se em mim.

E eu pressinto que a Noite, nesse instante,
se vai ajoelhar...

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Ai não te cales, água murmurante!
Ai não te cales, voz do Poeta errante!,

– se não a Serra pode despertar.

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folhado: Flor da Serra.

À nota de rodapé que aparece na página 35 do livro, acrescento agora esta nota de rodapé, que remete para a mensagem anterior:
perfume agreste do alecrim: Cheira mal.
E assim o melindre se desfaz, no entendimento, com a ajuda de um poeta. E não é só na forma, mas na atitude.
Obrigado Sebastião.

domingo, 13 de maio de 2018

NADA[S]_MEU[S]_0003_MINHA FLOR.

Minha Flor

Há sensibilidade em Ti, muita,
Como pétalas de esteva caídas,
Que não aguentam a flor colhida.

Mas também há rudeza,
Quando oiço: cheiram mal!...
Assim de rasgo, na minha sensibilidade,
Não escapando o rosmaninho do bouquet,
Que o não é, por ser raminho silvestre.

Quem sabe, ecos de ferro e fogo,
Escritos neste papel alvo e amarrotado,
Pingado, que nos calhou em vida.

Esteva, és a minha metáfora de Ti.

Flor da esteva, perto do Picoto da Melriça, no dia 12 de maio de 2018.


E cumpre-se assim o ciclo da vida. Quarenta e duas voltas ao Sol.


Foto não encenada. Passados 5 a 10 minutos, depois de ter colocado as flores num copo de água, as pétalas começaram a cair, quase em cadência, à qual assisti, emocionado, os momentos finais. Só tenho pena de não ter capturado o momento em video. Ficaram assim dispostas sobre a mesa, desmaterializadas nesta foto.

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Post scriptum:
O topónimo Melriça significa "terra onde abundam os melros". Lembra o teu craúna.

domingo, 6 de maio de 2018

Lavar os olhos de paisagem.


2018/05/05 / 08:52:40

É com esta visão que surge o título da mensagem, mas o pensamento tem andado ás voltas com a palavra paisagem, e o esmiuçado que em torno dela se faz no artigo "A desintegração da paisagemde Emanuel Pimenta. A minha epifania: entender o abarcar no movimento.

Esta charneca, que se vai abrindo à saída da aldeia de Gouveia, em direção ao Carrascal, tem horizonte de mar e a horizontalidade da Serra de Sintra como entreténs do olhar, um acesso à higiene física e mental, em que se vai alternando a preponderância de cada um deles, conforme o sentido em que se percorre a estrada que a corta, e que outrora não disponha de iluminação pública, acrescentando então uma vasta ausência noturna que nos interpelava.

Iluminada pela manhã, ou sombreada pela tarde, mas sempre percorrida em movimento automóvel, é de uma voluptuosidade reconfortante, que pode ser servida com ou sem música, com ou sem vento, e se houver necessidade de gritar, gritar.


2018/05/05 / 09:00:54

À pergunta disfarçada: acho que vou enviar uma mensagem ao José Carlos a perguntar se ainda dá tempo de ir à caminhada na Arrábida, respondes-te: sabes que dia é hoje? Sei, o Dia da Mãe... Serra-Mãe... tem tudo a ver. E assim fiquei a saber o que teria de fazer. Não fui ter com a Serra Mãe, e escrevi para cumprir uma necessidade.


Charneca em flor, ou o ninho de uma flor.
2018/05/05 / 09:11:40


CHUVA OBLÍQUA
                I
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

Fernando Pessoa, AQUI.



CHARNECA EM FLOR

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu bruel,
E já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca, AQUI.


P.S.

  • Estão feitos, vistos e batidos, gastos no uso vulgar de quem não presta atenção. Os versos e a vida, nos tempos que correm.
  • Como "cama de lavado", assim o "lavar os olhos de paisagem", mas também poderia ser: lavar os olhos na paisagem. Preferi a primeira, foi assim que "nasceu"... é a paisagem que relaxa os olhos e lava a alma, um olhar de lavado, o ver de outra forma, o ver melhor, o ficar a ver melhor, o ficar melhor...
  • «Carta do Monte Ventoso» [Francesco Petrarca], AQUI.
  • «Descoberta da Beleza da Paisagem» [in «A Civilização do Renascimento Italiano» de Jacob Burckhardt; um livro que me diz muito], AQUI.