domingo, 9 de outubro de 2016

Ganhar o dia.

Aquilo por que podem pagar-lhe na zona de sobreposição naquilo em que é bom, e que dá a profissão, forma e tempo de ganhar o dia. Mas também se ganha o dia na descoberta e contemplação do belo imaterial, que nos desperta, que nos dá uma outra existência.

O ponto de partida será sempre o material, afinal tenho um corpo, que não me pesa e liberta (exceto na doença e quando é castigado pelo trabalho), que me dá o movimento, que me permite trespassar o ar, a visão panorâmica com todas as cores e pormenores, os arrepios de sensações na pele, as vibrações musicais, o paladar que se antecipa no cheiro... viver é alimentar os sentidos... sentidos sentidos e os vários sentidos.

Não estava a prestar atenção, mas derrepente, assim com erro e tudo, de enxurrada, capto no ar: tem mais presença em mim o que me falta... Manoel de Barros... sabia apenas que existia, apartir do dia em que morreu... AQUI, vou atrás e encontro:

O livro sobre nada (AQUI)

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.

Assim é que se ganha o dia. E no seu final, estendido e repousado, começo a ler em voz que se ouve para mim e perto de mim, o frémito desta orquestra em movimento: eu, o verso e alegria de assim ganhar o dia. Cumpre-se o homem imprudentemente poético que existe em mim... palavras plagiadas do título do livro "Homens imprudentemente poéticos" de Valter Hugo Mãe. Descobrias no passado feriado, e ganhei o dia. Com um título assim dá logo vontade de ler... e fiquei a pensar: o que é ser homem imprudentemente poético?... é expor o flanco, dar a sensibilidade, desprezar a força e encontrar a força na diferença, ou tudo isto não passa de um grande disparate em construção.

Posso agora ler a entrevista do autor ao JL, e avançar para o livro, literatura meus caros, da qual andei muito tempo arredado. Ao mesmo tempo recupero "Liberdade para Escolher", com prefácio de João César das Neves, e "Eu, o Lápis" de Leonard Read. Ganhar o dia em todas as frentes.

Hoje é dia de lembrar que há dias em que se ganha o dia, e o dia de hoje ainda está mais novo do que velho, mas já tem uma perda, é o dia de despedida do Gustavo dos Escuteiros.


Hoje de nós no Museu do Azulejo, 9 de outubro de 2016.

1 comentário:

  1. Adorei o que escreves sobre o poeta Manoel de Barros que, incompreensivelmente, não foi e não muito lido no Brasil. Homem reconhecido como maior por um ícone da poesia brasileira.
    Confesso que só cheguei a ler dele, apenas uns dois poemas. Não tinha conhecimento desta beleza que oras colocas em teu espaço.
    Muito oportuno.

    Quanto a saída do Gustavo dos escuteiros, um sinal de que não quer mais ser criança, apesar de o fato de ser escuteiro ou escoteiro não torna ninguém criança. É uma escola de cidadania. Mas é um sinal que cresceu e muito rápido.
    UMA BOA SEMANA E OBRIGADO PELA BELEZA DE MANOEL DE BARROS.

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