Invariavelmente só queremos dar conta dela quando nos ronda. Eu, que tenho a curiosidade de a tentar antever nos meus próprios sinais de envelhecimento, que ressaltam com o virar das décadas, capítulos das páginas do livro da vida, corri para os braços da poesia para encontrar algum conforto na compreensão, que não é mais do que o desespero de quem não tem fé.
Atitude egoísta, lá irei, e foi assim que encontrei na antologia «Cem Poemas Portugueses do Adeus e da Saudade» [página 70] o seguinte soneto do Teixeira de Pascoaes:
Ao crepúsculo
Ó tristes lábios meus, rezai, rezai!
É a hora, sim, do Enigma. Eis o momento
Da extrema-unção da luz... E tudo vai
Com ela. E só nos fica o pensamento!
Pela flor que murchou no esquecimento;
Pela asa que se eleva e logo cai;
Pelo sol, pelas nuvens, pelo vento,
Ó tristes lábios meus, rezai, rezai!
Rezai por tudo quanto a morte leva,
Nas horas doloridas, em que a treva
Mostra seu negro vulto que arrepia...
E sinto, em mim, um vago horror profundo,
Uma tristeza já de fim do mundo,
Como se nunca mais houvesse dia...
O meu "eixo" está nas palavras a negrito, nem sequer é uma interpretação, é mais o que eu quero [alcanço] ler/ver do poema, porque as "horas doloridas" ou a "tristeza já de fim do mundo" só amassam ainda mais, e a resposta do Pascoaes é "rezai, rezai!"...
Mas hoje na missa de corpo presente o "rezai, rezai!", sem fuga possível, encontrou um seguimento nas palavras do padre, do qual não sei o nome e tenho pena [porque gosto de personalizar]... confiança na esperança. Embora fique na mesma, porque o problema de base quanto à fé se mantém, o problema [absurdo/medo da morte] pode ter uma solução para aqueles que acreditam.
A Tia Lurdes acreditava, o Tio Abel assim-assim, e era por eles que deveria ter começado, pelas minhas lembranças, e não pela tentativa narcísica de compreensão, no relativo conforto estatístico da idade que tenho [o meu egoísmo].
Como afilhado e sobrinho sempre senti um carinho e uma deferência de ambos por mim, é certo que vivemos muito tempo na mesma rua, e partilhei com o meu primo Paulo a "gloriosa" adolescência, mas penso que os restantes primos também se aperceberam desse carinho que a Tia Lurdes tinha por todos, fazia parte da sua essência, de fato ela prezava muito a família. Da minha madrinha "herdei" o jeito de fazer as coisas bem, mesmo à custa de um certo tempo, infelizmente não "herdei" a fé. O Tio Abel tinha vincado nele a preocupação da subsistência, que por vezes se sobrepunha a tudo e o tornava insensível, mas era um sujeito bem disposto, que gostava de ajudar, um trabalhador muito consciente do seu dever. Tantas estórias dos seus "desvairos" de fim de semana... não fazia a coisa por menos... 5L! As viagens na Mercedes grande para a Terra, a cadeira de esplanada, pintada de verde, onde se sentava ao fundo, o cesto com as couves do Chão de Lopes, as "bolas" de plátano que lhe atiramos... nesse dia tu apanhaste Paulo :)
As últimas boas recordações que guardo foram da apanha da azeitona [2009 e 2010]: eu e os meus pais, a Tia Lurdes e o Abel... uma equipa :) O meu pai conduzia o Golfo do Abel [sentado ao lado], os restantes três atrás. O tempo de viagem era aproveitado para conversar. Aqui vos deixo uma estória contada pela Tia Lurdes sobre o que ela ouvia à Conceição Carregueira [Pé da Serra] ao levantar de manhã:
Deitava os olhos ao telhado e os buracos a luzir [casa de gente pobre]
OLÁ RIBA! [toca a levantar]
À vidinha vidinha que tanto custas.
Hoje, dia de São João do ano de dois mil e dezassete, a Tia Lurdes e o Tio Abel fecharam os seus círculos excêntricos.
[Fotos, agosto e novembro de 2009, AQUI]
Que dizer em momento de tanta tristeza?
ResponderEliminarIncerteza para uns, certeza para tantos outros.
Aprendi a gostar do Abel, pela maneira simples e educada com que me tratava. Fizemos algumas viagens juntas, em especial quando nos fez a gentileza de nos permitir usar seu carro para conhecermos Guimarães.
Parte agora para o desconhecido?
Acredito, piamente, na vida depois da morte.
Não sou dos que a repele, mas às vezes sinto receio de enfrentá-la.
Augusto dos Anjos declamava:
"Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Minha consciência enorme te condena."
Ela virá, que queiramos quer não. É uma fatalidade que nenhum homem dela escapará.
Tenho amigo materialista, Urânio é um deles. Às vezes me indaga por que acredito na vida depois da morte e respondo com outra pergunta, por que ele não acredita?
De qualquer forma, acreditar ou não acreditar, a existência ou não na vida depois da morte do corpo físico, tem uma probabilidade de 50%. Uma probabilidade muito alta. Se não existir, nada perdi, porque entrarei num esquecimento eterno e se existr, estarei numa boa.
As evidências de existência são muitas e incontestáveis.
O poeta sabe decantar, mas a realidade é a que todos nós teremos de enfrentar, mais cedo ou mais tarde.
Agora mesmo, ha menos de 10 dias, um grande amigo, com apenas 60 anos partiu. Senti muito.
O ano passado, descobri-me com um cancro de próstata. Senti o mêdo, próprio do animal que desperta para a realidade da vida. Estou aqui. Penso que estou curado, mas de dois em dois meses faço o psa que tem dado um resultado excelente.
Devo repetir o exame na próxima semana, mas o médico me deu os parabéns. Sinto-me bem.
Esta é a vida, querido genro.
Embora sinta que você, como agnóstico, deveria tomar conhecimento da filosofia espírita. Ler sobre determinada filosofia, não significa que se vá aderir e aceita-la. O conhecimento é fundamental para respaldar nossas opiniões.
Eis aqui o que penso.
Senti muito pela partida do Casal Abel e Tia Lurdes.
Peço que transmita a Paulo as minhas condolências.
Para você, muita paz e que Jesus, o Divino Amigo, cubra você, sua familia nuclear e toda família portuguesa de muitas bênçãos.
Do sogro que muito vos estima
Samuel C Duarte
Obrigado Samuel e Carlos, quando li o título, sem saber o que estava no texto a ideia que tive foi das "aventuras" das viagens para a terra na traseira da Mercedes, que mais tarde li no texto, quantas vezes "Ti Abel" depois da última vez que foi à terra fez uma mala (de tralha) e dizia que estava pronto para ir para a terra (Pé da Serra) que seu eu não fosse levar ia apanhar a camioneta...
ResponderEliminarÉ engraçado como muitas lembranças que estavam esquecidas "apareceram" nesta última semana... ainda ontem veio ao pensamento uma das frases sempre dita pela "Ti Lurdes" e até há pouco tempo dita: "Como dizia o Carlos, madrinha vou fazer um carro com este ferno"... (ferno=ferro)... ou: "o ratito" (pela Manuela) ou: Ó mãe eu cá me enrrasco... (enrrasco=desenrasco), muitas lutas travou em prol família...
Quanto a ti Carlos foste e és muito mais que o Primo Carlos, pois pela proximidade das casas dos nossos pais, permitiu-me eu ter um irmão, às lutas de soldados com barreiras de legos, longas maratonas de monopólio, às bulhas (pêra) com as batotas nas cartas, nas engenhocas com a coisas de electricidade, até à cumplicidade na adolescência... mas eis que PUT@ da vida adulta não permita que tenhamos mais tempo juntos...
Voltando ao título...
Já tenho saudades do abraço com que era sempre recebido quando chegava em casa como na véspera do dia 19...
Mais uma vez obrigado pelo vosso carinho e apoio
Paulo Duarte
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ResponderEliminarDepois de ler as vossas palavras, também tenho esta necessidade de partilhar algo...já tenho o privilégio de conhecer algumas destas estórias de "aventuras" que sempre me colocam um sorriso, é bom lembrar!
ResponderEliminarApesar de pouco tento de convivio com o Tio Abel e Ti Lurdes sempre me despertaram carinho e sempre me receberam bem.
Não sou crente, mas a estátua de Santiago que a Ti Lurdes me ofereceu... só porque sim... faz parte da nossa casa e conforta-me.
Aqui fica e espero que tambem vos ajude um pouco!
http://www.domusmater.org/Emails_TMP/20170626_Estatua_SanTiago_003_SMALL.jpg
Tiago