domingo, 19 de fevereiro de 2017

Sentir Helena.

O sentido estético da vida, a mestria manual, uma self-made women no seu métier de pintora e professora, elegante e organizada, cadência de exemplo e equilíbrio, que se impõe naturalmente. Umas mãos inteligentes.

Do primeiro contato ficaram as paisagens, tanto mais que algumas me eram familiares, mas o grande mistério foi a Toca. Afinal beirava a Avenida do Atlântico, por onde passo à várias décadas. As árvores sempre olhei para elas, mas na primeira visita guiada a Comissária da Exposição chamou a atenção para a influência das suas belas formas na decisão de compra da propriedade, onde posteriormente foi construída a Toca.

Na semana seguinte confirmei, é difícil, no percurso que medeia o Banzão e a Praia das Maçãs (Pinhal da Nazaré), encontrar pinheiros mansos com copas assim tão bonitas como os da Helena. Pensei fazer uma "reportagem fotográfica", explorar ao redor, tentar uma aproximação pelo lado da Sarrazola, e retratar/confrontar tão belos exemplares com a maioria ao redor, que assim revelados nos revelam o ser de Helena. Para mim foi uma comoção, com tudo o que possa ter de enternecimento e desordem, porque sou capaz de parar para admirar uma árvore e de lhe fazer uma carícia no tronco. Estas árvores passaram a fazer parte da minha paisagem mental, estavam lá e não as via. Agora, quando passo na Avenida, dou olhares à minha satisfação (o que faço naturalmente com outras tantas pequenas coisas do quotidiano).

Às flores cheguei depois, e por este delicioso detalhe dedicado à Helena, que escapa aos olhos...





Mais uma vez a ajuda da Comissária foi providencial, não só por revelar o que não está defronte, mas por referir a dedicação e o esmero no uso que lhe dava, como só a Helena sabia fazer, a composição. A ideia de recriar a sua função, mesmo que pontualmente, ao longo da programação para os 5 meses e 3 dias de duração da exposição, teria sido certamente um momento de comunhão e gratidão para com a Helena, e na memória de quem presenciasse certamente ficaria gravado esse apelo ao belo no quotidiano, banalidades femininas aos olhos incautos.
Imagem retirada do catálogo da exposição "Flor de Água: Helena Roque Gameiro (1895-1986) - Aguarela e Artes Aplicadas", pág. 6, anotada por mim. A imagem não revela a qualidade técnica. A sua cor esvaída denota o passar de um século.

De pormenores concretos de Gestão (self-made women) também e tão bem lidou a Helena: valorizar monetariamente e vender o que pintava, a atividade regular de professora, fontes alternativas de rendimento, formas de gerir as flutuações económicas (escassez versus abundância) e consequentes desfasamentos financeiros. Este prospeto é um verdadeiro must, leia-se com atenção. 




O pormenor do erro ortográfico, que me escapou, decorreu do interesse partilhado pela forma de publicitar, que levou a outras conversas, fora de contexto, mas que souberam tão bem. A pretexto da Helena aconteceram outros pretextos.

A cumplicidade e complementaridade entre Helena e José, seu marido (agradeço ao Afonso a disponibilização da sua conferência, no âmbito desta exposição, e também da sua tese de doutoramento), está espelhada na casa-cenário-refúgio de ambos, a começar pelo início de tudo, a compra do terreno pela Helena com o dinheiro que ganhou com a venda dos seus quadros (exposição de 1947): a Toca com as suas árvores e flores, jardim alcantilado defronte do espraiar da Serra de Sintra no horizonte, num fim de mar que não se vislumbra. E no sentido oposto, até onde conseguirei ver?



É o que tento descortinar a partir do que a Helena aguarelou.

Falar e aguarelar tocam-se no rimar: expressar com desvelo, como abrir a boca e falar [coisa acertada e bela], como respirar, sem deslumbramento, porque assim o é, essêncial.

Acanhado (ontem), por não ser oportuno, fiquei apenas com a pequena curiosidade satisfeita acerca da Torre do Leão, afinal um abrigo de atividades lúdicas, com nome à José, no mesmo perímetro da Toca. A explicação da neta Ana bastou, o pedido para espreitar a paisagem da Toca fica à espera de oportuno encontro, talvez no Bananeiro (Pomarinho da Várzea).

A caixa de pintura com o nome da neta Ana, primorosamente desenhado em jeito de monograma pela avó, e o pormenor de reservar para si o pintar a aguarela, nas saídas para o campo, enquanto a neta pintava a óleo, consentâneas com a sua percepção de tempos diferentes é surpreendente porque não a entendo.

Finalmente, o olhar melancólico de Helena (que vi nas suas fotos), a melancolia palpável que a neta Joana procurava entender. Talvez seja a veladura do tempo que se ía fechando, tal como nos seus quadros de paisagem (ou a perda das capacidades visuais com a idade, de que se queixava no final da vida), o "peso" acumulado ao longo do tempo, capturado no "barroco" das suas flores de 1967.




Com esta exposição, que está quase a terminar (espero ir no último dia), Helena regressou à sua casa primordial pela mão dedicada e delicada da Sandra Leandro. Para mim foi um belo momento, que reforça a minha querença no bem que nos faz em procurar dar um sentido estético desde o mais elementar quotidiano.

Obrigado Sandra Leandro.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

AsPaS.

Propiciam o movimento, volteando a imaginação.



Ilustração de ETC (Eduardo Teixeira Coelho)



Abrindo aspas...

[...] Vês além trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso batalhar e tirar-lhes a todos a vida; os despojos começam a enriquecer-nos. Esta é boa guerra e bom serviço se faz a Deus: acabar com tão má raça à face da terra.
[...]
– Bem se vê, respondeu D. Quixote, que nada sabes de aventuras. São gigantes e, se tens medo, sai daí e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em feroz e desigual batalha.
[...]
– Não fujam, criaturas vis e cobardes, um só cavaleiro vos investe!
Levantou-se nesse momento um pouco de vento e as velas começaram a mover-se. D. Quixote, vendo-as em movimento, disse:
– Ainda que movam mais braços que o gigante Briaran, hão-de-mas pagar.
Dizendo isto, bem coberto com o escudo, encomendou-se à sua senhora Dulcineia e, com a lança em riste, lançou-se sobre a vela do primeiro [...]
A vela arrastou cavalo e cavaleiro, projectando-os a alguma distância muito maltratados.
[...]
Só podia ignorar isso quem tivesse outros dentro da cabeça.
– Cala-te, respondeu o herói, as coisas de guerra são muito sujeitas a caprichos da sorte, sobretudo quando se tem por inimigo o temível encantador Frestão que me roubou o aposento e os livros. Ele transformou estes gigantes [...] para me retirar a glória de os vencer, tal é a inimizade que me tem.

in Dom Quixote de la Mancha, na tradução/adaptação de Maria Ponce, a que tenho, mas a que procuro é a tradução/adaptação de Pedro da Silveira, também para a mesma Biblioteca dos Rapazes. É uma pequena demanda minha.

Parecia um conjunto de flautas gigantes, com uma sonoridade profunda, intensa e invulgar que não conseguia identificar. [...]

Entretanto, fui percebendo que um vulto furtivo ia espreitando da pequena janela [...].

O som que eu tinha ouvido e gravado era proveniente das cabaças, aqueles vasos de barro, de diferentes tamanhos, que são presos às velas [...]. [...] Os maiores produzem o som mais grave e os mais pequenos o mais agudo. A frequência do som depende da velocidade do vento e, consequentemente da velocidade de rotação das velas. Maior velocidade corresponde a menor frequência. Logo no momento em que o som se torna mais grave – quando a velocidade de rotação das velas era suficientemente alta para excitar os vasos maiores, que produzem a frequência mais grave – é altura de deitar o grão nas mós e começar a moagem. [...] A frequência mais grave indica também perigo. Quando se faz ouvir, é o momento de travar o mecanismo, de rodar as velas para uma posição segura [...]. O sistema de cabaças é uma espécie de analisador de frequências analógico.
E há outro pormenor: o moleiro, do alto [...] ouvia todos os sons distantes à sua volta e, além da velocidade do vento, que lhe era indicada pelo sistema de cabaças, sabia a sua direcção, pela natureza dos sons longínquos que lhe chegavam: os do mar indicavam que o vento estava de poente e os do campo, das serras e das quintas indicavam que vinha de nascente.
[...] Também o estado das diferentes componentes do complexo mecanismo [...], feitas de madeira, é avaliado através do toque e do som que produzem durante o funcionamento. Pelo toque se detectam eventuais rachas e defeitos na estrutura da madeira e pela escuta contínua do modo como todo aquele mecanismo vai soando se detecta alguma eventual anomalia que obrigaria a chamar o mecânico-carpinteiro [...]. Com a ajuda do som se conduzem ainda outras operações, como a distribuição do cereal pelos diversos andares, quando é caso disso. O mecanismo [...] é como uma grande orquestra afinada e o moleiro o maestro-compositor, que escreve a música, dirige os instrumentos e corrige as desafinações. [...]

in Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa

Acontece muitas vezes [...] ver o moleiro sentado, ou a mexericar em coisa sem importância. [...] Vida descansada? [...] É certo que parte do trabalho [...] é de simples vigilância. [...] Mas o próprio maquinismo da moagem pede atenção. É o deitar o grão na moega; o ensacar a farinha do tremonhador; um pequeno jeito no aliviadouro, quando o girar da mó não dá boa farinha.
Tarefa mais trabalhosa é o picar das mós. A frequência da picagem depende, evidentemente, da duração do trabalho de moagem e da dureza das pedras. Mas se aquele fôr constante e rápido, pode a picagem ter de ser feita de três em três dias, e mesmo menos.
Estas são as tarefas normais de um moleiro. Mas há uma peça que se parte, apodrece ou desloca. E há grandes desgraças de um mastro que se parte [...].
Claro que em casos assim sérios, quem os resolve são os especialistas, mas o moleiro acompanha, vigia, e muitas vezes aconselha. Porque o moleiro é igualmente um homem com habilidade, por vezes mesmo engenhoso, habituado a contar apenas consigo para qualquer compustura [...].
É talvez este isolamento em que decorre a vida do moleiro que contribui para a sua maneira cordial de receber quem chega. [...]

[...] a maneira como, em certas áreas, se dispõe o velame, constitui uma linguagem significante, concebida para proclamar ou comunicar à distância factos especialmente relevantes respeitantes a determinados aspectos da vida do moleiro ou à actividade [...]. [...] em caso de luto [...] dispõem-se as varas do velame "em cruz", com o pano colhido [...] a indicar que [...] não havia cereal para moer, e a pedir grão, armava-se [...] uma vela única, e punha-se ao alto. [...] uma vela única a um terço do pano ou enrolada com cinco voltas num dos estais [...] o moleiro ia picar as mós [...] embora parado, havia [...] gente, que podia receber o grão. [...]

in Tecnologia Tradicional Portuguesa Sistemas de Moagem, página 487-488

[...] Os moleiros do Oeste têm ainda uma forma muito característica de denominar as diferentes direcções do vento. Assim, um vento de Nordeste é denominado de Norte-Alto, um vento de Este tem o nome de vento Suão, um vento de Sudeste é chamado de Charoco, o vento Sudoeste é chamado de vento Travessio, um vento do quadrante Oeste chama- se Mareiro, e o vento de Noroeste é o vento da Berlenga, ou Berlengueiro (nome que lhe foi atribuído por vir da direcção das ilhas Berlengas). [...]

in Simbologia associada aos moinhos de vento do Oeste, de Fátima Nunes.

... fechando aspaS.


As aspas, no apanhar de citações, são também as velas do moinho, entre o ganha-pão e o molinar na cabeça de quem não tem os pés assentes na terra, cabeça de vento, ou anda às voltas com as palavras, moleiro das palavras, como o era Vitorino Nemésio pela forma como conjugava o gosto pelas duas artes (escrita e molinologia). Fica em falta uma citação sua, e tudo isto começou porque tomei conhecimento das Cartas do Meu Moinho de Alphonse Daudet, que continuo a desconhecer, e antes de tudo, porque gostaria muito de ter um moinho... é um desejo, velho.


... GiRaNdO... parabéns Francisca :)