sábado, 13 de maio de 2017

Mater dolorosa?

Frações de segundo podem fazer a diferença, o contexto, o antes e o depois. Visto assim parece, mas pode não ser. A dor física, a tristeza na privação da liberdade, o sofrimento que é sentido pelas várias formas de vida, certamente maior quanto mais complexo for o seu sistema nervoso.

E como será sentida, pressentida, a morte pelos primatas [ordem à qual pertencemos]? Os humanos têm consciência da sua finitude, a primeira causa de melancolia, mas os outros primatas?

A etologia, ciência que estuda o comportamento animal, e que nos pode ajudar a compreender o nosso próprio comportamento por via do processo evolutivo que nos moldou apartir de antepassados comuns, passou a estar no meu interesse por causa da seguinte foto.


Foto retirada DAQUI.


Tentar compreender o que realmente estaria a acontecer [ó pretensão!], e não alinhar na corrente de sentimentalismo à volta de uma imagem que se tornou viral.

A primeira palavra que me ocorreu quando vi a foto foi Pietà... sim, a que foi esculpida por Miguel Ângelo, só que não bate certo: os filhos estão parecidos, mas as mães divergem na direção do olhar e na expressão do rosto. Explicando melhor, não é tentar encontrar um entendimento com base na coincidência imagética, mas foi apartir dela, ou melhor da não coincidência, que me apercebi que a escultura é uma visão idealizada da dor de mãe, a fotografia é um acaso de circunstância, em que não sabemos o que aconteceu. A escultura, enquanto representação do real, é "perturbada" pela cultura, e a fotografia, enquanto imagem do real, é "perturbada" pelo antropocentrismo. Não posso inferir comportamento humano onde ele não está: a macaca não é um ser humano e a escultura é uma estilização de um sentimento.

Na sebenta da cadeira de Etologia lecionada pelo Prof. Dr. Frank Dellinger na Universidade da Madeira encontrei esta deliciosa "revelação":

[...] o poema "O Rouxinol" da Viscondessa das Nogueiras, Matilde Bettencourt: 

O mago cantor da noite
Inspirou-me a frouxa mente,
Nessa hora em que gorgeia
Seus amores docemente

De facto, o que a poetisa não sabia, é que o canto do rouxinol macho tem a função de manter outros machos fora do seu território. Portanto poderia ser considerado um brado de raiva contra os seus competidores pelas fêmeas, uma interpretação muito contrária à que a poetisa tinha em mente, e desprovida da componente amorosa e doce. [...]

Penso que é suficientemente esclarecedor, embora continue sem saber o que a foto [verdadeiramente] retrata. O final da NOTÍCIA também não ajuda: «O drama da mãe macaca não durou muito mais, pois pouco tempo depois de a fotografia ter sido tirada, a cria levantou-se».

Volto ao início: Frações de segundo podem fazer a diferença, o contexto, o antes e o depois. Visto assim parece, mas pode não ser.

Convergindo... Frans de Waal: O comportamento moral nos animais.


Vita dolorosa?


Na fotografia da capa do livro vi uma jovem mulher, na lisura da pele do rosto; pobre, na roupa puída, rasgada, remendada; vergada à subsistência, no maçar do linho.





Fácil imaginar uma vida difícil, de trabalho desgastante e pouco proveitoso.

Comparativamente ao nível de desenvolvimento sócioeconómico atual é uma evidência, no entanto aquela pessoa não viveu na minha realidade, e eu não irei viver no seu quotidiano. Anacronismos.

Contraponho com a seguinte apresentação do livro «A Salvação do Belo» de Byung-Chul Han que podem encontrar AQUI :

«O liso, o polido, a ausência de vincos são, na época atual, identificados com o belo. É isso que existe em comum entre as esculturas de Jeff Koons, alguns smartphones e a depilação.

Estas características evidenciam um “excesso de positividade” que Byung-Chul Han já tinha abordado noutros ensaios, mas que aqui desenvolve nos campos da arte e da estética.

Porque é que nos agrada tanto o “polido”?, pergunta Han. Porque não oferece resistência nem nos causa incómodo ou dor. O belo digital é um espaço liso do que é idêntico e recusa a estranheza, a alteridade, a negatividade.

O que considerávamos naturalmente belo atrofiou-se no liso e o polido do belo digital.

Hoje o belo converteu-se naquilo de que se diz “gosto”, em qualquer coisa de agradável, que se avalia pelo seu caráter imediato e pelo valor de uso e consumo.

Mas sem a negatividade da quebra do outro fica prejudicado o acesso ao belo natural e anulada a distância contemplativa. A beleza é diferida, não é um brilho momentâneo, mas qualquer coisa que ilumina em silêncio e através de desvios e mediações.

Não se pode encontrar a beleza no contacto imediato, é mais frequente que surja como reencontro e reconhecimento.»


Post scriptum


13. Jesus é descido da Cruz.

Pode não parecer, quando o sentido figurado não coincide com o termo técnico, mas é uma fotografia, do Francisco Gomes, retirada do livro «Via-sacra para crentes e não-crentes», com textos de José Luís Nunes Martins e Paulo Pereira da Silva (autor do excerto que se segue).

[...]
José e Nicodemos aproximam-se da cruz e começam a retirar os cravos. O corpo do Senhor cai, pesado e ensanguentado, sobre eles. Recebem-n'O nos braços ficando também eles com sangue e água nas vestes. Colocam-n'O nos braços de sua Mãe.
[...]

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