domingo, 6 de outubro de 2019

Marcas de areia.

«Por outro lado, o soneto que começa com "Quando voltei" reporta-se a um regresso à praia onde o poeta reencontrou os passos que lá tinha feito.»

Estas palavras, que encontrei na tese de mestrado do Tiago Clariano, acionaram o meu suspension of desbelief, o mesmo que me fazia desconfiar da literalidade dos dois primeiros versos:


Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a húmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
— Tão rediviva!, nos meus olhos baços...

Olhos turvos de lágrimas contidas.
— Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda essa extensa pista — para quê?
Se há de vir apagar-vos a maré,
Com as do novo rasto que começa...


No meu parco, apressado, e recente entusiasmo pela obra, fiquei na dúvida se não seria o soneto "Regresso ao lar", a que se refere Fernando Pessoa em carta ao autor:

«Ao soneto que considero o maior de todos os seus, e é sem dúvida um dos maiores que tenho lido — “Regresso ao Lar” — , não me refiro, visto que o seu assunto, infelizmente, inibe (e creio ser essa a vontade de V. Exa.) que ele se publique.» AQUI

Enquanto este ["Quando voltei"] foi publicado em 1916, na revista Centauro, juntamente com outros 14, que foram o embrião da Clepsydra, o outro ["Regresso ao lar"] consta dos perdidos.

Bem mais tarde, em 1935, Álvaro de Campos também "Regresso[u] ao lar" assim [AQUI]:

Há quanto tempo não escrevo um soneto
Mas não importa: escrevo este agora.
Sonetos são infância e, nesta hora.
A minha infância é só um ponto preto

Que num imóbiI e fútil trajecto
Do comboio que sou me deita fora
E o soneto é como alguém que mora
Há dois dias em tudo que projecto.

Graças a Deus, ainda sei que há
Quatorze linhas a cumprir iguais
Para a gente saber onde é que está...

Mas onde a gente está, ou eu, não sei...
Não quero saber mais de nada mais
E berdamerda para o que saberei.



Mas o que verdadeiramente me fez ligar tudo foram as palavras do poeta Sebastião da Gama, reveladas por Maria de Lourdes Belchior no prefácio que fez para o livro "Campo Aberto":

«Tenho notado em mim esta outra coisa: que às vezes um pormenor físico exterior é como que o despertador de coisas que viviam em mim mas que eu não exprimia; e que esse mesmo pormenor vai aparecendo no poema de tal modo que, aos olhos de quem me lê, ele não é mais do que um símbolo inventado, quando ele é, de facto, um símbolo visto»,

e como remate, de contradição [minha], o seu poema "Condição", de 1950:

Constrói ao menos
qualquer coisa efémera.
Pois mais não podes ser,
sê ao menos efémero.

Grava os passos na areia,
desenha sobre a estrada
teu vulto.
É melhor do que nada.

A desfazer-te o rastro
virá o Mar, é certo.
Virá, é certo, a Noite
beber a tua sombra.

Efémero? Serás...
Mas presente
no Mar, eternamente;
na Noite, para sempre.


SEBASTIÃO DA GAMA
in "Campo Aberto", 5.ª edição de janeiro de 1999, Ática, páginas 121 e 122.



É meu o poema "Quando voltei".
Inteiro sou ASSIM, como me desenhou Leal da Câmara.




Marcas de areia... sim, pedregoso fluir de ampulheta...
Marcas na areia... ao tempo...


Fui ASSIM, quando fui colocada na página 95, a marcar o soneto Caminho.

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Post scriptum


Aprende a renunciar
a tudo
até mesmo ao silêncio

in "A Papoila e o Monge", 1.ª edição de novembro de 2013, Assírio & Alvim, página 36.

Para que aqui fique assinalada a investidura de D. José Tolentino Mendonça [5 de outubro de 2019].

O que querem dizer estas três linhas?

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