Do primeiro contato ficaram as paisagens, tanto mais que algumas me eram familiares, mas o grande mistério foi a Toca. Afinal beirava a Avenida do Atlântico, por onde passo à várias décadas. As árvores sempre olhei para elas, mas na primeira visita guiada a Comissária da Exposição chamou a atenção para a influência das suas belas formas na decisão de compra da propriedade, onde posteriormente foi construída a Toca.
Na semana seguinte confirmei, é difícil, no percurso que medeia o Banzão e a Praia das Maçãs (Pinhal da Nazaré), encontrar pinheiros mansos com copas assim tão bonitas como os da Helena. Pensei fazer uma "reportagem fotográfica", explorar ao redor, tentar uma aproximação pelo lado da Sarrazola, e retratar/confrontar tão belos exemplares com a maioria ao redor, que assim revelados nos revelam o ser de Helena. Para mim foi uma comoção, com tudo o que possa ter de enternecimento e desordem, porque sou capaz de parar para admirar uma árvore e de lhe fazer uma carícia no tronco. Estas árvores passaram a fazer parte da minha paisagem mental, estavam lá e não as via. Agora, quando passo na Avenida, dou olhares à minha satisfação (o que faço naturalmente com outras tantas pequenas coisas do quotidiano).
Às flores cheguei depois, e por este delicioso detalhe dedicado à Helena, que escapa aos olhos...
Mais uma vez a ajuda da Comissária foi providencial, não só por revelar o que não está defronte, mas por referir a dedicação e o esmero no uso que lhe dava, como só a Helena sabia fazer, a composição. A ideia de recriar a sua função, mesmo que pontualmente, ao longo da programação para os 5 meses e 3 dias de duração da exposição, teria sido certamente um momento de comunhão e gratidão para com a Helena, e na memória de quem presenciasse certamente ficaria gravado esse apelo ao belo no quotidiano, banalidades femininas aos olhos incautos.
Imagem retirada do catálogo da exposição "Flor de Água: Helena Roque Gameiro (1895-1986) - Aguarela e Artes Aplicadas", pág. 6, anotada por mim. A imagem não revela a qualidade técnica. A sua cor esvaída denota o passar de um século.
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De pormenores concretos de Gestão (self-made women) também e tão bem lidou a Helena: valorizar monetariamente e vender o que pintava, a atividade regular de professora, fontes alternativas de rendimento, formas de gerir as flutuações económicas (escassez versus abundância) e consequentes desfasamentos financeiros. Este prospeto é um verdadeiro must, leia-se com atenção.
O pormenor do erro ortográfico, que me escapou, decorreu do interesse partilhado pela forma de publicitar, que levou a outras conversas, fora de contexto, mas que souberam tão bem. A pretexto da Helena aconteceram outros pretextos.
A cumplicidade e complementaridade entre Helena e José, seu marido (agradeço ao Afonso a disponibilização da sua conferência, no âmbito desta exposição, e também da sua tese de doutoramento), está espelhada na casa-cenário-refúgio de ambos, a começar pelo início de tudo, a compra do terreno pela Helena com o dinheiro que ganhou com a venda dos seus quadros (exposição de 1947): a Toca com as suas árvores e flores, jardim alcantilado defronte do espraiar da Serra de Sintra no horizonte, num fim de mar que não se vislumbra. E no sentido oposto, até onde conseguirei ver?
É o que tento descortinar a partir do que a Helena aguarelou.
Falar e aguarelar tocam-se no rimar: expressar com desvelo, como abrir a boca e falar [coisa acertada e bela], como respirar, sem deslumbramento, porque assim o é, essêncial.
Acanhado (ontem), por não ser oportuno, fiquei apenas com a pequena curiosidade satisfeita acerca da Torre do Leão, afinal um abrigo de atividades lúdicas, com nome à José, no mesmo perímetro da Toca. A explicação da neta Ana bastou, o pedido para espreitar a paisagem da Toca fica à espera de oportuno encontro, talvez no Bananeiro (Pomarinho da Várzea).
A caixa de pintura com o nome da neta Ana, primorosamente desenhado em jeito de monograma pela avó, e o pormenor de reservar para si o pintar a aguarela, nas saídas para o campo, enquanto a neta pintava a óleo, consentâneas com a sua percepção de tempos diferentes é surpreendente porque não a entendo.
Finalmente, o olhar melancólico de Helena (que vi nas suas fotos), a melancolia palpável que a neta Joana procurava entender. Talvez seja a veladura do tempo que se ía fechando, tal como nos seus quadros de paisagem (ou a perda das capacidades visuais com a idade, de que se queixava no final da vida), o "peso" acumulado ao longo do tempo, capturado no "barroco" das suas flores de 1967.
Com esta exposição, que está quase a terminar (espero ir no último dia), Helena regressou à sua casa primordial pela mão dedicada e delicada da Sandra Leandro. Para mim foi um belo momento, que reforça a minha querença no bem que nos faz em procurar dar um sentido estético desde o mais elementar quotidiano.
Obrigado Sandra Leandro.
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