domingo, 12 de fevereiro de 2017

AsPaS.

Propiciam o movimento, volteando a imaginação.



Ilustração de ETC (Eduardo Teixeira Coelho)



Abrindo aspas...

[...] Vês além trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso batalhar e tirar-lhes a todos a vida; os despojos começam a enriquecer-nos. Esta é boa guerra e bom serviço se faz a Deus: acabar com tão má raça à face da terra.
[...]
– Bem se vê, respondeu D. Quixote, que nada sabes de aventuras. São gigantes e, se tens medo, sai daí e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em feroz e desigual batalha.
[...]
– Não fujam, criaturas vis e cobardes, um só cavaleiro vos investe!
Levantou-se nesse momento um pouco de vento e as velas começaram a mover-se. D. Quixote, vendo-as em movimento, disse:
– Ainda que movam mais braços que o gigante Briaran, hão-de-mas pagar.
Dizendo isto, bem coberto com o escudo, encomendou-se à sua senhora Dulcineia e, com a lança em riste, lançou-se sobre a vela do primeiro [...]
A vela arrastou cavalo e cavaleiro, projectando-os a alguma distância muito maltratados.
[...]
Só podia ignorar isso quem tivesse outros dentro da cabeça.
– Cala-te, respondeu o herói, as coisas de guerra são muito sujeitas a caprichos da sorte, sobretudo quando se tem por inimigo o temível encantador Frestão que me roubou o aposento e os livros. Ele transformou estes gigantes [...] para me retirar a glória de os vencer, tal é a inimizade que me tem.

in Dom Quixote de la Mancha, na tradução/adaptação de Maria Ponce, a que tenho, mas a que procuro é a tradução/adaptação de Pedro da Silveira, também para a mesma Biblioteca dos Rapazes. É uma pequena demanda minha.

Parecia um conjunto de flautas gigantes, com uma sonoridade profunda, intensa e invulgar que não conseguia identificar. [...]

Entretanto, fui percebendo que um vulto furtivo ia espreitando da pequena janela [...].

O som que eu tinha ouvido e gravado era proveniente das cabaças, aqueles vasos de barro, de diferentes tamanhos, que são presos às velas [...]. [...] Os maiores produzem o som mais grave e os mais pequenos o mais agudo. A frequência do som depende da velocidade do vento e, consequentemente da velocidade de rotação das velas. Maior velocidade corresponde a menor frequência. Logo no momento em que o som se torna mais grave – quando a velocidade de rotação das velas era suficientemente alta para excitar os vasos maiores, que produzem a frequência mais grave – é altura de deitar o grão nas mós e começar a moagem. [...] A frequência mais grave indica também perigo. Quando se faz ouvir, é o momento de travar o mecanismo, de rodar as velas para uma posição segura [...]. O sistema de cabaças é uma espécie de analisador de frequências analógico.
E há outro pormenor: o moleiro, do alto [...] ouvia todos os sons distantes à sua volta e, além da velocidade do vento, que lhe era indicada pelo sistema de cabaças, sabia a sua direcção, pela natureza dos sons longínquos que lhe chegavam: os do mar indicavam que o vento estava de poente e os do campo, das serras e das quintas indicavam que vinha de nascente.
[...] Também o estado das diferentes componentes do complexo mecanismo [...], feitas de madeira, é avaliado através do toque e do som que produzem durante o funcionamento. Pelo toque se detectam eventuais rachas e defeitos na estrutura da madeira e pela escuta contínua do modo como todo aquele mecanismo vai soando se detecta alguma eventual anomalia que obrigaria a chamar o mecânico-carpinteiro [...]. Com a ajuda do som se conduzem ainda outras operações, como a distribuição do cereal pelos diversos andares, quando é caso disso. O mecanismo [...] é como uma grande orquestra afinada e o moleiro o maestro-compositor, que escreve a música, dirige os instrumentos e corrige as desafinações. [...]

in Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa

Acontece muitas vezes [...] ver o moleiro sentado, ou a mexericar em coisa sem importância. [...] Vida descansada? [...] É certo que parte do trabalho [...] é de simples vigilância. [...] Mas o próprio maquinismo da moagem pede atenção. É o deitar o grão na moega; o ensacar a farinha do tremonhador; um pequeno jeito no aliviadouro, quando o girar da mó não dá boa farinha.
Tarefa mais trabalhosa é o picar das mós. A frequência da picagem depende, evidentemente, da duração do trabalho de moagem e da dureza das pedras. Mas se aquele fôr constante e rápido, pode a picagem ter de ser feita de três em três dias, e mesmo menos.
Estas são as tarefas normais de um moleiro. Mas há uma peça que se parte, apodrece ou desloca. E há grandes desgraças de um mastro que se parte [...].
Claro que em casos assim sérios, quem os resolve são os especialistas, mas o moleiro acompanha, vigia, e muitas vezes aconselha. Porque o moleiro é igualmente um homem com habilidade, por vezes mesmo engenhoso, habituado a contar apenas consigo para qualquer compustura [...].
É talvez este isolamento em que decorre a vida do moleiro que contribui para a sua maneira cordial de receber quem chega. [...]

[...] a maneira como, em certas áreas, se dispõe o velame, constitui uma linguagem significante, concebida para proclamar ou comunicar à distância factos especialmente relevantes respeitantes a determinados aspectos da vida do moleiro ou à actividade [...]. [...] em caso de luto [...] dispõem-se as varas do velame "em cruz", com o pano colhido [...] a indicar que [...] não havia cereal para moer, e a pedir grão, armava-se [...] uma vela única, e punha-se ao alto. [...] uma vela única a um terço do pano ou enrolada com cinco voltas num dos estais [...] o moleiro ia picar as mós [...] embora parado, havia [...] gente, que podia receber o grão. [...]

in Tecnologia Tradicional Portuguesa Sistemas de Moagem, página 487-488

[...] Os moleiros do Oeste têm ainda uma forma muito característica de denominar as diferentes direcções do vento. Assim, um vento de Nordeste é denominado de Norte-Alto, um vento de Este tem o nome de vento Suão, um vento de Sudeste é chamado de Charoco, o vento Sudoeste é chamado de vento Travessio, um vento do quadrante Oeste chama- se Mareiro, e o vento de Noroeste é o vento da Berlenga, ou Berlengueiro (nome que lhe foi atribuído por vir da direcção das ilhas Berlengas). [...]

in Simbologia associada aos moinhos de vento do Oeste, de Fátima Nunes.

... fechando aspaS.


As aspas, no apanhar de citações, são também as velas do moinho, entre o ganha-pão e o molinar na cabeça de quem não tem os pés assentes na terra, cabeça de vento, ou anda às voltas com as palavras, moleiro das palavras, como o era Vitorino Nemésio pela forma como conjugava o gosto pelas duas artes (escrita e molinologia). Fica em falta uma citação sua, e tudo isto começou porque tomei conhecimento das Cartas do Meu Moinho de Alphonse Daudet, que continuo a desconhecer, e antes de tudo, porque gostaria muito de ter um moinho... é um desejo, velho.


... GiRaNdO... parabéns Francisca :)

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