domingo, 28 de fevereiro de 2016

Capas de ofídio.

 A palavra melancolia prendeu a minha atenção na lista de livros do alfarrabista Jorge, do Nunes. Indaguei sobre o livro (O Livro das Melancolias) e o seu autor, Paulo Mantegazza.

Da pesquisa feita veio uma achega que reforçou a intensão de ir, ver, e tomar posse se fosse do meu agrado. A referência ao livro «resgatado do sótão de casa dos meus pais», aos silêncios, seguido de excerto, no blogue do Pacheco Pereira AQUI.


Depois é a alegria de ir ao alfarrabista, apressado no curto espaço de tempo que o trabalho permite, e em sobressalto, será que o que procuro ainda se lá encontra? Mesmo assim é a minha pausa, o momento entre alfarrábios, permeado de dois dedos de conversa com o Jorge. E depois o melhor, olhos que deslizam à toa (será?) por entre capas e lombadas, por vezes algo me surpreende.


Ainda tinha O Livro das Melancolias, e mais quatro, todos do Paulo Mantegazza, encadernados da mesma forma, provavelmente estariam juntos na mesma biblioteca. Folheio o livro, está em muito bom estado, o Jorge como sempre avisa que o preço já baixou (em relação ao preço de Catálogo), pouso o livro em cima dos restantes quatro, um breve compasso de espera, pego nos cinco e digo: vou levar todos!... notei alguma surpresa no Jorge, provavelmente não estaria à espera de os vender todos de uma só vez. Livros dos anos 20 do século passado, de autor esquecido e temática demodé. Fez-me um preço ainda melhor.


Desmembrar uma biblioteca é violento, faz lembra um corpo supliciado numa roda de tortura, ou então a separação forçada de irmãos, mas é o mais provável de acontecer: o que acontecerá aos meus livros quando eu desaparecer? Vou levar todos!... este meu impulso foi a minha repulsa, o contrariar uma separação quase certa, não seria eu a separar aqueles cinco irmãos, todos vestidos de igual, mas um igual diferente, orgânico. Tive pena. Vieram todos comigo.

As suas capas repetiam um padrão de pele, mas uma pele invulgar. No dia seguinte tive um sobressalto: e se fossem de pele verdadeira? e de que espécie? O que observava ao viés da luz acentuava as suspeitas do tacto, a irregularidade, a cromia e o desenho percebidas pela visão, numa repetição aproximada, não exata, que afasta a hipótese de uma ardilosa pele industrial. A idade dos livros também corrobora esta suspeita.

Por comparação de padrões, capas e fotos na internet, constatei grande semelhança com a pele de um ofídio, da espécie Pitão de Angola, nome científico Python anchietae, nome vulgar catumbela (Lobito). Também tentei saber se a pele de ofídios é usada, ou foi usada, na encadernação de livros, mas não encontrei referência a tal fato. Poderá ser uma experiência pontual, de alguém que esteve em Angola, caçou o animal e resolveu encadernar os livros com a sua pele. Pura especulação minha.

Ainda não falei com o Jorge sobre a origem destes livros, quem foi o seu dono, se é que isso é possivel. Todos eles ostentam o carimbo da Papelaria, Livraria e Tabacaria Eduardo João da Silva, em Faro (Rua D. Francisco Gomes), que também tem a sua história AQUI e foto AQUI.


Deixo AQUI (ficheiro zipado das 10 imagens sem marca identificativa) as digitalizações das 5 capas e 5 contracapas, dos 5 livros, bem como uma possivel reconstituição de partes da pele do animal, com base nas mesmas. Podem experimentar montar este puzzle. As imagens seguintes têm uma marca identificativa que se refere ao nome do livro, e respetiva capa (F de frente) e contracapa (V de verso). A orientação das imagens respeita a colocação vertical do livro na estante, permitindo a leitura horizontal do título na lombada.









Consegui discernir dois grupos de imagens que apresentam um certo grau de contiguidade, um com 5 imagens e o outro com 4 imagens. Deixei de fora a capa ST-F por não se encaixar em nenhum dos grupos. Visualizando fica assim:





Melhores propostas são bem vindas :) Mais uma nota curiosa AQUI.

Esta estória começou a 19 de fevereiro de 2016, no dia em que comprei esta inquietação (os 5 livros), no dia em que morreu Umberto Eco.
«... Um dos mal-entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece. Na verdade acontece muitas vezes ir-se à biblioteca porque se quer um livro cujo título se conhece, mas a principal função da biblioteca, pelo menos a função da biblioteca da minha casa ou da de qualquer amigo que possamos ir visitar, é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importantes para nós. 
... A função ideal de uma biblioteca é de ser um pouco como a loja de um alfarrabista, algo onde se podem fazer verdadeiros achados e esta função só pode ser permitida por meio do livre acesso aos corredores das estantes. 
... Se a biblioteca é, como pretende Borges, um modelo do Universo, tentemos transformá-la num universo à medida do homem e, volto a recordar, à medida do homem quer também dizer alegre, com a possibilidade de se tomar um café, com a possibilidade de dois estudantes numa tarde se sentarem numa maple e, não digo de se entregarem a um amplexo indecente, mas de consumarem parte do seu flirt na biblioteca, enquanto retiram ou voltam a pôr nas estantes alguns livros de interesse científico, isto é, uma biblioteca onde apeteça ir e que se vá transformando gradualmente numa grande máquina de tempos livres...». 
Umberto Eco
Excerto AQUI

Será assunto a desenvolver.

1 comentário:

  1. Tem um velho ditado aqui do Brasi que afirma: gaiola bonita não då de comer a canário.
    Que dizer então de um livro, bem cuidado, com capa criteriosamente, feito com coro curtido de uma Putin d'Angola?
    A editora que o construiu, comandada por editor cuidadoso poderia ter sido levado a imaginar dois objetivos:
    1) enganar o leitor menos atento, que estivesse a catar obra de valor materisl;
    Ou
    2) àquele que imaginasse: o título e a capa me leva a deduzir da profunda importância de seu conteúdo, de seus ensinamentos filosóficos.

    Se o adquirente tem a perspicácia do Carlos, o gosto pela boa literatura, Vale a pena adquri-lo.
    Melancolia pode ser tristeza que leva a estado depressivo ou profunda saudade do valor de um passado bem vivido com um amor inesquecível.
    Gostei da postagem sobre Umberto Eco.
    Paz e bem

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