sábado, 24 de junho de 2017

[intencionalmente deixado em branco]

Invariavelmente só queremos dar conta dela quando nos ronda. Eu, que tenho a curiosidade de a tentar antever nos meus próprios sinais de envelhecimento, que ressaltam com o virar das décadas, capítulos das páginas do livro da vida, corri para os braços da poesia para encontrar algum conforto na compreensão, que não é mais do que o desespero de quem não tem fé.

Atitude egoísta, lá irei, e foi assim que encontrei na antologia «Cem Poemas Portugueses do Adeus e da Saudade» [página 70] o seguinte soneto do Teixeira de Pascoaes:

Ao crepúsculo

Ó tristes lábios meus, rezai, rezai!

É a hora, sim, do Enigma. Eis o momento
Da extrema-unção da luz... E tudo vai
Com ela. E só nos fica o pensamento!

Pela flor que murchou no esquecimento;

Pela asa que se eleva e logo cai;
Pelo sol, pelas nuvens, pelo vento,
Ó tristes lábios meus, rezai, rezai!

Rezai por tudo quanto a morte leva,

Nas horas doloridas, em que a treva
Mostra seu negro vulto que arrepia...

E sinto, em mim, um vago horror profundo,

Uma tristeza já de fim do mundo,
Como se nunca mais houvesse dia...

O meu "eixo" está nas palavras a negrito, nem sequer é uma interpretação, é mais o que eu quero [alcanço] ler/ver do poema, porque as "horas doloridas" ou a "tristeza já de fim do mundo" só amassam ainda mais, e a resposta do Pascoaes é "rezai, rezai!"...

Mas hoje na missa de corpo presente o "rezai, rezai!", sem fuga possível, encontrou um seguimento nas palavras do padre, do qual não sei o nome e tenho pena [porque gosto de personalizar]... confiança na esperança. Embora fique na mesma, porque o problema de base quanto à fé se mantém, o problema [absurdo/medo da morte] pode ter uma solução para aqueles que acreditam.

A Tia Lurdes acreditava, o Tio Abel assim-assim, e era por eles que deveria ter começado, pelas minhas lembranças, e não pela tentativa narcísica de compreensão, no relativo conforto estatístico da idade que tenho [o meu egoísmo].

Como afilhado e sobrinho sempre senti um carinho e uma deferência de ambos por mim, é certo que vivemos muito tempo na mesma rua, e partilhei com o meu primo Paulo a "gloriosa" adolescência, mas penso que os restantes primos também se aperceberam desse carinho que a Tia Lurdes tinha por todos, fazia parte da sua essência, de fato ela prezava muito a família. Da minha madrinha "herdei" o jeito de fazer as coisas bem, mesmo à custa de um certo tempo, infelizmente não "herdei" a fé. O Tio Abel tinha vincado nele a preocupação da subsistência, que por vezes se sobrepunha a tudo e o tornava insensível, mas era um sujeito bem disposto, que gostava de ajudar, um trabalhador muito consciente do seu dever. Tantas estórias dos seus "desvairos" de fim de semana... não fazia a coisa por menos... 5L! As viagens na Mercedes grande para a Terra, a cadeira de esplanada, pintada de verde, onde se sentava ao fundo, o cesto com as couves do Chão de Lopes, as "bolas" de plátano que lhe atiramos... nesse dia tu apanhaste Paulo :)

As últimas boas recordações que guardo foram da apanha da azeitona [2009 e 2010]: eu e os meus pais, a Tia Lurdes e o Abel... uma equipa :) O meu pai conduzia o Golfo do Abel [sentado ao lado], os restantes três atrás. O tempo de viagem era aproveitado para conversar. Aqui vos deixo uma estória contada pela Tia Lurdes sobre o que ela ouvia à Conceição Carregueira [Pé da Serra] ao levantar de manhã:

Deitava os olhos ao telhado e os buracos a luzir [casa de gente pobre]
OLÁ RIBA! [toca a levantar]
À vidinha vidinha que tanto custas.

Hoje, dia de São João do ano de dois mil e dezassete, a Tia Lurdes e o Tio Abel fecharam os seus círculos excêntricos.

[Fotos, agosto e novembro de 2009, AQUI]

domingo, 11 de junho de 2017

Maria, horta e jardim.

[...] Voltaire termina ‘Cândido, ou o Otimismo’ de uma forma enigmática, mas deliciosa – sim, o otimismo é bom; mas "devemos cultivar o nosso jardim".
O que li AQUI, mas que não consegui confirmar na edição que tinha à mão,



pois termina assim: mas é preciso cultivar a nossa horta.

Jardim e horta não são sinónimos declarados, quase funcionam como antónimos, se pensarmos na dualidade corpo/mente, prosaicamente: comem-se de formas diferentes.

No original em francês temos: mais il faut cultiver notre jardin.

A nossa palavra jardim vem do francês jardin, que de fato é mais abrangente. A nossa horta vem do latim hortu, por via da palavra horto, esta sim também mais abrangente, como jardin. Mas também é certo que traduzir é interpretar, é como a aplicação das leis, raiando a reinvenção e a subtileza.

No penúltimo capítulo a trupe de desventurados fica a aguardar melhor destino numa quinta. Entre o vizinho dervixe que não lhes dá troco às suas efabulações filosóficas, e o vizinho turco que no trabalho encontra a cura para «o aborrecimento, o vício e a necessidade», estamos mais próximos da horta que sustenta, o terra a terra... e «cada qual tratou de exercer os seus talentos.», ou seja, cultivar o seu jardim.

Talento[s]... cuidar para que floresça[m]. Os teus, como estão e o que fazes com eles?

O cólofon revelou-me o nome da tradutora: Maria Archer. Quem és tu Maria?... horta, jardim?

Dos vários pontos de partida, alguns dos quais estão remetidos para o final desta mensagem, encontrei o seguinte livro, que terminei hoje de ler.


A fota da capa é de 1931, Maria Archer tinha 32 anos. Tinha-se divorciado um ano antes.

«[...] pose ao estilo da época [Betty Boop, acrescento eu], com ar sorridente e mesmo provocante, com um ombro a descoberto. Exala a segurança de uma mulher que se sente atraente e confiante.» Página 34 do livro.
Escritora, jornalista, conferencista, tradutora. Mulher culta e autodidata. A condição feminina na sociedade portuguesa do seu tempo, exposta a nu nos seus romances. A realidade colonial vivida, das terras e gentes por onde passou, nos seus escritos de pendor etnográfico. As suas obras críticas ao regime e o exílio. Portugal, África, Brasil.

O regresso a Portugal em 1979, debilitada e sem recursos, «quase sem darmos por isso. Mão amiga a troxe, semi consciente e piedosamente a internou na Mansão de Santa Maria de Marvila [com o tempo deixou de funcionar, um sucedâneo AQUI]» (página 122). Morreu a 23 de janeiro de 1982. Passou o seu testemunho de luta  para que as mulheres tenham iguais oportunidades.

A Maria era assim (páginas 112 e 113 do livro):

Esta situação terá ocorrido no início dos anos sessenta [no Brasil] [...] uma das meninas que refere ter ouvido a Dona Maria [Archer] a falar com a sua mãe, dizendo que nada substituia a escola. Tendo em conta que se tratava do seu próprio emprego [precetora das meninas], que estaria, assim, em causa, como veio a acontecer quando recorreram a outras formas de ensino para essas meninas, não deixa de ser surpreendente aquela afirmação, porque o facto de viver em casa da família pressupõe que se trata de um emprego a tempo inteiro. [...] Outro elemento que confirma o que relatámos atrás é referido por uma das duas irmãs, que afirma que a Dona Maria lhes falava da importância da liberdade de pensamento, de ação e sexual da mulher, o que seria contrário às ideias da mãe das jovens, [...] o que a levaria a repreender a precetora.
Outro aspeto curioso é a referência ao seu aspeto sempre cuidado e elegante, [...] ao qual é aduzido um pormenor: o seu jeito de mãos para arranjar acessórios, possivelmente muitas vezes para si própria.


Post scriptum


Do prefácio do livro consta o seguinte:

E aqui estamos com um livro sobre a mulher ousada, sem medo e assim elogiada por João Gaspar Simões, em outubro de 1949: «Esperem o juízo do tempo, e verão! Quando em 2049 se celebrar o centenário do aparecimento de Há-de Haver Uma Lei... todos os editores portugueses dignos desse nome baixarão os olhos, envergonhados, ao ouvir esta tremenda efeméride: em 1949, Maria Archer, autora de duas dezenas de volumes, teve de publicar a expensas suas o seu livro de contos Há-de Haver Uma Lei... pois não havia então em Portugal um único editor capaz de perceber que este livro era uma coleção de obras-primas do conto português».




Consegui um exemplar e estou a ler. Mas vamos começar pelos pormenores.

1. O ex-líbris na capa:


Em 1949 tinha a autora  50 anos. Fantástico, e mais não digo...

AINDA [há estrelas no céu]... o ainda transformou-se em LINDA por ilusão ótica provocada pela pouca luz ambiente, e um subconsciente encantado que assim o quis ler. Ficou mais ou menos assim...



2. A listagem das suas obras ao tempo:



Aparece a tradução de Cândido [Guimarães & C.ª Editores], a que está na origem desta mensagem, e da qual procuro uma primeira edição.

3. O excerto do diário de André Gide no início em epígrafe [mais referências a Gide AQUI]:





Post scriptum 2

«Parece uma horta, é só flores»... proferido num tom exclamativo esta manhã [sábado, 17 de junho], em Queluz, por um transeunte [aparentava quarenta anos, de perna tatuada], enquanto enxotava do para-brisas algumas pétalas.

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O que encontrei e li na internet sobre a Maria:

Maria Archer (1899-1982);
Maria Archer - Século XX - Centro Virtual Camões;
Singularidades de Maria Archer;
Menina e moça em África;
Entre o Índico e o Atlântico: Incursões literárias de Maria Archer;
Percursos de Maria Archer no Brasil - Teses USP;
Terras onde se fala português.