São seis capítulos, sem título, mais os agradecimentos... «Aonde pertencerei?»... Não pertence. «A migração familiar que nos fez sair da miséria e que me permitiu desafiar as leis de ferro da minha avó e dos Espírito Santo é também a causa deste vazio. A liberdade tem um preço.»
É o seu relato, de uma realidade que toca milhares de pessoas na Área Metropolitana de Lisboa, com origem nas mais diversas regiões do país, no seu caso Alentejo. É esse olhar sobre o Alentejo, é um retrato do Alentejo, não vale a pena querer tapar o sol com a peneira, ou querer remeter o Henrique Raposo para os arrabaldes de Loures e de Odivelas. Não é Maria Filomena Mónica, mas quem disse que o queria ser? Há honestidade intelectual, não força o entendimento ao preconceito, observa a realidade, trabalha com os dados estatisticos, faz comparações, apresenta hipóteses explicativas, alarga horizontes.
Gosto particularmente de algumas expressões que utiliza (cria), e que são fruto dessa fusão de vivências, por exemplo «o odor a haxixe dos eucaliptos» (destaco a verde mais duas). O suburbano e o rural, o que transgride e o certinho, nada disso, como desonestamente se poderia insinuar. Não precisa de conhecer o cheiro do haxixe, basta sentir o forte cheiro do eucalipto em dias de verão para experimentar o entorpecimento do olfato, e a sua persistência pode causar agonia, estase. São experiências que marcam, como ter de limpar o ânus a uma pedra ou folhas, porque não existe papel higiénico, muito menos casa de banho. Em matéria de falta de hospitalidade e desconfiança o melhor é falar com os técnicos que percorrem o país de norte a sul a montar linhas telefónias, internet e TV, e constatar de viva voz o que nos diz o Henrique. É assim a ruralidade portuguesa.
Convido-vos à leitura do livro. As transcrições que apresento resultam da minha leitura e sublinhados, nesse sentido são subjetivas, mas não deixam de ser as palavras e o pensamento do autor, porque muito se escreve sobre o que se quer pensar.
Postal que acompanha o livro. Fotografia de Pauliana Valente Pimentel. |
Capítulo I (15 páginas)
«o Alentejo saltou do Baleizão neorealista para o mapa do escapismo burguês, mas o retrato continua a ser impreciso e dependente de quatro clichés, o silêncio, o calor, a planície, a alegada bondade do povo das aldeias.»
«Era uma vidinha muito etnográfica.»
«Como todas as famílias de migrantes desenraizados, construímos um Alentejo mítico sem qualquer precisão no traço.»
Capítulo II (15 páginas)
«O porte sulista exige uma figura esfíngica, quase inerte, que recusa falar com as mãos; o alentejano vive dentro de uma camisa-de-forças emocional que bloqueia a espontaneidade.»
«Diamantina era uma sniper social»
«o odor a haxixe dos eucaliptos»
«Não há ângulos mortos no Alentejo, e a liberdade só é possível num ângulo morto que preserve a nossa intimidade de olhares alheios.»
«Ao sair daqui, ao recusar o estatuto privado de criada, ao aceder ao estatuto público de operária, a minha mãe e a sua geração de mulheres destruíram uma prisão sexual.»
Capítulo III (26 páginas)
«a vida estava traçada desde o nascimento: aos sete anos começava-se a trabalhar como ajudante de pastor, aos catorze passava-se à condição de ganhão (trabalhador sem ofício).»
«A ceifa do trigo domina a grande mitologia alentejana, mas a ceifa do arroz é que era o verdadeiro Gólgota.»
«a gesta alentejana do sofrimento só aceita a dor e a fadiga causadas pelo trabalho manual de sol a sol.»
«É tentador explicar o fenómeno do maltês através da pobreza, mas a explicação não cola por várias razões.»
«É assim o omertà alentejano: as histórias não passam de pai para filho.»
«Num certo sentido, David é o primeiro alentejano a sentir-se parte de Portugal.»
«Talvez seja esta a essência do porte alentejano: o homem da planície fundiu-se com a própria terra, entregou o seu livre-arbítrio à natureza e, em consequência, despromoveu a ação humana (benigna ou maligna) à condição de mera extensão da natureza.»
Capítulo IV (11 páginas)
«a emigração é rara no Alentejo.Não existem maisons e avecs no sul.»
«A posse da terra era o fator de divisão social entre as três classes clássicas: lavradores (senhores da terra), seareiros (não tinham terra mas tinham searas pois arrendavam terra), trabalhadores (nem terra nem seara).»
«Esta informalidade transformou o Alentejo litoral na zona da Europa com maior percentagem de uniões de facto.»
«No Alentejo, não existia nem existe o culto da família alargada.»
«É como se o inconsciente alentejano assumisse que os filhos têm o direito de recusar cuidar dos pais na velhice.»
«a grande especificidade do sul: a cultura do suicídio»
Capítulo V (15 páginas)
«Se o Alentejo litoral fosse um país independente, seria a nação com a taxa de suicídio mais alta do mundo»
«É o fenómeno mais transversal e um fator que reforça a típica tensão alentejana.»
«Ora, o que distingue o Alentejo não é a pobreza, a paisagem, o calor, a solidão ou a genética, mas sim a arrumação do suicídio na prateleira amoral, no ângulo morto da moral.»
«a cultura alentejana não tem as palavras que permitem a contestação moral do suicida. Tal como eu não tinha a palavra certa (pobreza) para descrever a casa dos meus avós, tal como a tia Albertina não tinha a palavra necessária (malária) para sentir piedade por quem fervia em febres tropicais, tal como a minha avó não tinha os conceitos morais necessários (escolher, livre arbítrio) para compreender o meu desejo pela leitura, tal como os meus avôs não tinham o conceito moral (criança) capaz de gerar carinho pelos filhos, tal como os alentejanos do passado que não tinham a palavra certa para diabolizarem os filhos ilegítimos, (bastardo) e tal como as alentejanas que não possuíam o termo certo (violação) para condenarem os abusos que sofriam, os alentejanos de hoje ainda não têm a linguagem adequada para condenarem o suicidio.»
«Longe da visão católica, o Alentejo aproximou-se de Judas e afastou-se de Pedro.»
«Há idosos orgulhosos e ciosos da sua independência em qualquer parte do país, mas é no Alentejo que existe uma cultura que autoriza de imediato o salto para a solução mais rápida.»
«não posso evitar uma óbvia aritmética sentimental: quer no lado materno quer do lado paterno, devo tudo às minhas avós. Posso respeitar os avôs, mas só posso acarinhar as avós.»
«A história um dia fará justiça a esta geração de mulheres que criou o conceito de criança entre o fim da roda dos expostos (final século XIX) e o advento da pílula. E o que é mais espantoso é que elas iniciaram esta revolução mental contra a miséria, contra os elementos e, sobretudo, contra a cultura marialva dos maridos.»
«No campo dos costumes, o Alentejo era progressista e reacionário ao mesmo tempo.»
«O machismo do sul é tão virulento como o machismo do norte, a diferença está na canalização da violência; lá em cima a violência marialva provoca uma explosão, cá em baixo provoca uma implosão, o suicídio.»
«Em comparação com o norte, há mais gritos e desmaios. Há desespero - sinal de uma cultura que não acredita na transcendência e que, em consequência, vê no funeral um final absoluto e não um ponto de passagem.»
«dezenas de mulheres a rezar o terço criam uma cortina de som que proteje a viúva, os filhos, os irmãos; aquele ritmo cadenciado comove-nos e ampara-nos, é a comunidade unida na dor, o funeral deixa de ser uma travessia individual, a morte torna-se menos desesperante. Se o tivesse aprendido a tempo e horas, eu teria rezado o terço ali naquela aldeia junto à fonte do Mondego.»
Capítulo VI (7 páginas)
«A linhagem do velho Alentejo termina aqui o seu caminho, não passará para as minhas filhas.»
«Mas por enquanto sinto demasiadas arestas: o ar desconfiado das pessoas, a distância gerada pela excessiva formalidade, os tabus sobre o passado, a falta de bairrismo, a ausência de liberdade e privacidade, o individualismo radical, a frieza emocional que nunca fala com as mãos e, acima de tudo, a cultura suicida.»
«todo o meu estendal de memórias tem mesmo base factual, não são projecções esperançosas e falsas da minha imaginação ou do meu desejo de pertencer. Mas se não são sonhos também não são âncoras, não me garantem qualquer sentimento de pertença. São pingos, não formam uma corrente capaz de me levar. Não, o Alentejo não é a minha terra prometida.»
Agradecimentos (3 páginas)
«Alentejo Prometido também resulta de muitas leituras.»
«E só ela sabe o que na verdade este livro representa para mim.»
«Quando chegamos à idade adulta, temos a tentação de pensar que somos apenas o fruto do nosso esforço, das nossas leituras, da nossa inteligência. Não é bem assim.»