domingo, 3 de dezembro de 2017

Voar...

Uma exposição retrospetiva congrega obra dispersa, dá a entender, descobre sentidos, arrasta-nos para a aventura de uma vida.

Uma visita guiada à exposição "Mão Inteligente: Raquel Roque Gameiro (1889-1970) - Ilustração e Aguarela" pela sua comissária, a Prof.ª Sandra Leandro, é um convite a voar sobre a obra da artista, mas ao mesmo tempo pousar docemente sobre os pormenores, ter uma explicação mais técnica se solicitada [dá espaço às limitações de cada um], ser surpreendido com novas descobertas [para além da exposição a investigação prossegue].


Auto-retrato com as filhas Ana, Manuela e Guida [e uma criada] na Foz do Arelho [?], 1916 [Raquel tinha 27 anos].





























A suspeita inicial apontava para a Foz do Arelho [página 6 do catálogo], novo contributo aponta para São Martinho do Porto [por causa das ruínas representadas], e assim, com desvelo, a novidade nos foi anunciada. O José Carlos achou delicioso o pormenor da botina [?] no pé da Raquel, que borda. A fofura/intimidade da composição, o traço preciso... "mancha como ninguém" [página 22 do catálogo]. As mãos [que sustentam, que procuram, que se aplicam]...


À hora do chá, 1919 [Raquel tinha 30 anos].

As grades no espelho [a condição feminina?], o rosto suspirado, o retratado que a criada olha... uma estória que se desenrola, ou não, na cabeça de quem passa... os tecidos, as madeiras, ou a mais prosaica formosura, o tentar adivinhar o estilo do mobiliário. Todos chegaram um pouco, mas um pouco mais além...


Estudo [fiando na cozinha], c. 1930 [Raquel teria 41 anos].

As imagens e símbolos ancestrais [o leito para lá das cortinas], o nosso inconsciente colectivo, que nos percorre ao longo da vida [as várias idades da mulher, no apanhado de imagens anteriores].


[Mulher de S. Tomé], 1953 [Raquel tinha 64 anos].

A personalidade, o contraste, a cor... é o teu preferido Manuela [mana]. Esta mulher faz pela vida.

Os pormenores que escapam, mas estão lá: pés sujos em "Descamisado o milho"...


Descamisando o milho [pormenor], 1957 [Raquel tinha 68 anos].

ou a cauda do gato em "Tavira". Com maior ou menor rapidez, a percepção visual de cada um vai descobrindo a vida que se desenrola ao redor de uma imponente chaminé, num horizonte de "telhados de tesouro"...



Tavira [pormenor], 1960 [Raquel tinha 71 anos].

A Raquel foi uma incansável ilustradora. Nesse "voo", nessas "águas", foi soberana, não só pela qualidade na quantidade, literalmente um traço firme e desassombrado, que nos leva a pairar, no enquadramento, mas também no apelo à sua fantasia que nos oferece [mil e uma...] .

Desafiando a gravidade... não é só o óbvio, olhem para o barrete.
Ilustração, c. 1903 [Raquel teria 14 anos].

Fiquei encantado com as flores de cardo da Raquel [pormenor que resolveu uma dúvida minha, pela busca que suscitou]. Esta ilustração era acompanhada por uma seistilha, que substituo pelo poema do João Monge [cantado pela Aldina Duarte].


Maria da Saudade, c. 1930 [Raquel teria 41 anos].

Dói-me ser a flor do cardo
Não ter a mão de ninguém;
Tenho a estranha natureza
De florir com a tristeza
E com ela me dar bem

Dói-me o Tejo, dói-me a lua
Dói-me a luz dessa aguarela
Tudo o que foi criação
Se transforma em solidão
Visto da minha janela

O tempo não me diz nada
Já nada em mim se consome
Não sou princípio nem fim
Já nada chama por mim
Até me dói o meu nome

Dói-me ser a flor do cardo
Não ter a mão de ninguém
Hei-de ser cravo encarnado
Que vive em pé separado
E acaba na mão de alguém

Sem querer, nem sequer sonhava que iria terminar esta mensagem assim [com o poema do João Monge], porventura descontextualizado, não da ilustração, mas da vida da Raquel, fica o convite para desbravarem primeiro a exposição, e depois assistirem à próxima visita guiada no dia 24 de fevereiro de 2018, às 15h.

O catálogo tem muitos pormenores interessantes [porque ajudam a entender e a avançar] como ESTE.

É a minha recr[i]/[e]ação.


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P.S. A Raquel tinha a "mania dos postais", que eu desconhecia quando escrevi a mensagem "Almourol?... Almourol!... Almourol". Estas quadras deliciosas foram-lhe dedicadas [página 17 do catálogo]:

Bonitos bilhetes
Postaes illustrados
Ninguem terá tantos
Nem mais apurados

Tem duzias, tem centos
Milheiros, milhões;
Dez mil albuns cheios
Com taes colecções

Aquilo só visto!
Que grande Babel!
Que forte mania
Que tem a Raquel!

Mais tarde descobri, e comprei, um postal ilustrado datado de 6 de outubro de 1910 [pescadores da Nazaré], se a memória não me falha, endereçado à Raquel, que não sei onde está, perdido na minha pequena Babel [também gosto de postais ilustrados como a Raquel]. Uma estória recambolesca que lembra um episódio contado por Umberto Eco.

A legenda diz Raquel Roque Gameiro, mas não é!... é a sua irmã Helena. O que suspeitei, e me confundiu durante algum tempo, foi agora desvendado pela Prof.ª Sandra Leandro.


Imagem da Hemeroteca Digital, AQUI.

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